sexta-feira, 17 de junho de 2011

A mais negra

I.

A memória dobra-se, estende-se pelos campos cheios de pirilampos – Sou ela, nado no fundo do lago de Patrícia; estou em todas as línguas, nas suas fronteiras quentes e fluorescentes – Passo: passo sempre, segura: preciso de calor, tenho a boca torta cheia de medo e o coração recheado de leite condensado: No meu útero um relâmpago, bebo o caminho que tenho à frente porque o futuro é líquido, derrete-me da boca. Sou a possibilidade em tudo múltipla de te ver sorrir : Recheio-te de estrelas – Nunca lhes cortarei as pontas, nunca lhes cortarei as pontas – Deixá-las crescerem, entrarem na rede, precisamos da rede, mas comemo-la; ela equilibra-nos, mas ela faz-nos perder - as pontas da estrela crescem outra vez: Entram nas casas: Do Pólo Norte à Austrália. Na Nova Zelândia abrem a porta à estrela, ela entra, cheia de sede, porque procura, procura perder-se no interior do humano, duplo-poço contínuo. Sou a memória, uma rede contínua, às vezes estendem-me pelos campos,tapo os pirilampos com o meu manto de seda e vêem-se várias luzes fluorescentes sobre o pano que sou eu

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II.

Estou agora num ringue de gelo em Viena, e as tropas aliadas estão prestes a entrar aqui, a ficção mergulha na realidade, escrevo um verso de Rilke no gelo "Sentir é dois"; "Amar é mais" completa um outro patinador que vem atrás de mim, o registo é logo apagado por outros patinadores, outras linhas se sobrepõe a mim, memória última: no gelo, na comunicação, na história da humanidade – O patinador que me segue escreve outro poema, e as linhas dos patins no gelo tornam-se fluorescentes por instante, enquanto os americanos entram na cidade lê-se um poema que fala de perenidade, de gelo e de girassóis, o poema é assinado por Alma Mahler, sujeito poético do patinador que me segue. No gelo escreve outros aforismos aos quais logo se sobrepõem outras riscas de patins – Nunca se apagou nada até hoje, sempre se falou/escreveu/criou por cima, apagar é impossível, apenas é possível renovar, revitalizar, criar por cima – Os patins são de marca – Sou a memória: tenho uns patins suiços, de marca, já competi na Suécia, já estive dentro dos cactos: Ao meu lado dorme um homem que quer esquecer – Acorda, levanta-me a saia beje, fala de Alma Mahler, fala-me de um avião que como todos aviões não pode cair, não pode voar, não pode arrebentar, apenas lhe é permitido subir e chegar ao seu destino: A torre latina de escada em caracol tomba, o continente treme de líbido, não se consegue conter mais, do Perú ao Equador todos os faróis dão o sinal, uma pirâmide de fogo está em fuga contínua pelo deserto. Meteste-me pirilampos no cabelo, no porto de Lima, à noite escura, num sopro quente de Verão: o Chile parte-se ao meio - a amnésia beija-nos na boca – Temos caminho à nossa frente e bebemo-lo – A amnésia diz: isto e aquilo deve ser esquecido, e por isso a pirâmide cavalga, em fogo, cheia de botijas de gás dentro. A tempestade beija a amnésia. Nossa Senhora da fertilidade recheia-me o útero de relâmpagos e cerejas – A amnésia mete a música entre as pernas, é a pintora mais perversa; pinta árvores, mete céu entre as árvores – Possuí a música que possuí o céu, que possuí a cidade – Os muros precisam de ajuda, toca um trompete do quarto andar, por uma alegoria mais doce, a ficção mergulha na realidade. Atirei a chave do diário para o fundo do mar, o farol acendeu-se.


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III.

Levantaram-me as saias nas traseiras do convento, um homem que quer esquecer, injecto-lhe uma vontade Nova nos olhos, vejo-os descerem pela montanha, alguém me escreveu uma carta: Não te esqueças de ir para a varanda ver esses olhos verdes passarem/ fugirem/ desaguarem no mar – Vejo todos os olhos em fuga, todos os olhares a descerem pela montanha, a dobrarem-se sobre o seu próprio eixo, por uma visão Plena* Uma visão que tudo abarca, todos os sentidos a fazerem tremer a terra: ela não aguenta mais o seu líbido e treme; Sou a mais obssessiva de todas as paixões, tenho um gorro azul que a loucura me deu – E não consigo esquecer, como Cassandra, tudo absorvo, como uma esponja da alma condenada à mais doce e pergisa das penas, nada esquecer – A patinadora escreve agora uma ode de Ricardo Reis, depois uma de Petrarca e um homem sentado ao lado do ringue aponta tudo numa mortalha, todos os poemas, depois enrola tabaco nas mortalhas e fuma-os – No gelo as marcas também desaparecem, a letra carolina de uma caligrafia perfeita fica com riscos por cima – São agora muitos os patinadores. Os exércitos americanos entram na cidade. Viena está pronta para ser aliada. A guerra é agora um fio com que brinca um gato, um fio que une os pólos. Um fio que é um dia de chumbo. Pedi ao patinador que me segue que personificasse um sentimento: ele personificou o medo: Escreveu que ele era quadriculado e em tudo geométrico, como o voo previsivel de uma mosca, mas que tudo agarra por trás como uma rede. Levantaram-me as saias nas traseiras de um convento, um homem que quer esquecer: a minha saia é curta e beje – Vejo do canto do espelho três pastorinhos búlgaros, os que velam: para que seja noite e dia ao mesmo tempo, um dia roxo – A amnésia beija-nos na boca, a ficção mergulha na realidade – Vejo-a passar de bicicleta ao lado do Farol de Alexandria, com os barcos ao fundo, os amantes ao fundo; ao fundo também eu, novelo que faz esquecer – Que as minhas mãos ardam se me esquecer dos teus olhos – Estamos na Guerra Colonial, estou na líbido de um soldado português:

- E então eu dizia às pretas: Punho Punho – E elas batiam-me uma punheta.

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Apressei o fim da história, virei todas as páginas com os meus dedos compridos: os sósias do fundo alimentam-se da minha líbido: Estou no lago quente de Patrícia, onde todos os que aquecem se banham. Os sósias do fundo são só um: o mesmo homem com a mesma touca às riscas. Olham-se num espelho Barroco abandonado no fundo do lago. De vez em quando inventam a escrita para que novas civilizações contem as suas histórias, as transmitam aos seus descendentes: Tornam a Literatura Possível – Injectam leite condensado na Estrela para que as suas pontas cresçam com mais força: A literatura entra em todas as casas, acende todos – Dormem no meio das balizas subaquáticas. O seu empate é uma forma de amor. De que falamos quando falamos dele? Um diário de uma vida cai de um vigésimo andar. A amnésia possuí o mar, permite as marés, permite a lua que se recheia de encontros. A amnésia leva pólen nas patas, para outro continente. Um abraço pré-hispânico em tudo eterno há-de polarizar todos os movimentos, todos os gestos humanos, toda a Vida* O que há antes dela? Depois dela? Apenas pólen nas patas, um ramo de violetas e uns patins de marca. Os canhões americanos rodeiam o ringue de gelo.

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