sábado, 30 de outubro de 2010

Miguel de Unamuno: Névoa

Miguel de Unamuno disse sobre “Dom Quixote de la Mancha” que as duas personagens fulcrais, Dom Quixote e o seu escudeiro Sancho eram mais reais que o próprio Cervantes; com esta afirmação pode-se perceber tudo o que está implícito em “Névoa”: a novela tem trinta e três capítulos e um anexo final “Oração fúnebre em forma de epílogo”, para além disso dispõe de um prólogo, um pós-prólogo e um “prólogo à terceira edição, ou seja, a história de Névoa”: a novela é assim nada mais do que um pós-prólogo de Miguel de Unamuno, como autor da obra.
Logo no primeiro capítulo, Augusto, homem solteiro que vive dos seus rendimentos e a personagem principal da novela, sai de casa sem uma direcção definida. Logo vê passar uma mulher muito atraente, segue-a, repara que os seus olhos são muito sexys e cheios de vida; Segue-a até casa. Afasta-se um pouco e mal esta entra, mete conversa com a criada que está à porta, dá-lhe algum dinheiro em troca de informações, logo fica a saber que ela se chama Eugénia e é professora de piano. Nos dias seguintes volta a segui-la com a mesma obsessão. Uma das vezes em que passa pela sua casa, vê que de uma das varandas cai uma gaiola com um periquito, apanha a gaiola, não perdendo a oportunidade de poder entrar assim em casa de Eugénia; é recebido pela tia de Eugénia que logo lhe agradece muito e convida-o a entrar para a sala, logo aparece Eugénia, a tia apresenta-o como o salvador do periquito, mas ela trata-o com desinteresse e desprezo. Logo sai. O desprezo de Eugénia acende em Augusto um desejo ainda maior. Considera que até aí viveu numa névoa, e os olhos dela tinham-no despertado para o mundo. Acende-se nele uma enorme vontade de viver e de se aproximar de Eugénia. Escreve-lhe um bilhete que entrega à governanta. Fica a saber que ela tem um noivo o que o desanima mas não o faz baixar os braços: Apresenta-se novamente em sua casa onde é bem acolhido pelos seus tios. A tia intercede junto de Eugénia a favor de Augusto. Alertando-a para o desemprego de Maurício, o seu noivo, que considera mandrião e alertando-a para as boas qualidades de Augusto. Este percebe pelas conversas com a tia de Eugénia que esta tem uma casa hipotecada por dividas familiares, e que para recuperar a hipoteca tem de dar lições de piano embora não goste minimamente de música.
Augusto liquida a divida e refere isso aos tios. A casa deixa de estar hipotecada. Eugénia em vez de ficar contente, dirige-se a casa de Augusto insultando-o e tratando-o com desprezo, afirmando que este a queria comprar com a liquidação da dívida e que isso era uma forma baixa de conquistar uma mulher. Volta para junto de Maurício e convence-o a arranjar emprego para que se possam casar o mais cedo possível. Não aceita a oferta de Augusto e trata-o com desprezo. Mas a incapacidade de estar com Eugénia desperta os seus impulsos e desejos em relação ao sexo oposto, até aí adormecidos. Refere a Victor, o seu melhor amigo, que desde que vira Eugénia todas as mulheres lhe parecem belas. Aqui Unamuno influencia-se verdadeiramente por Dom Quixote e o seu estado de paixão por Dulcinea. Nota-se em “Névoa” que a influência de Cervantes é bem visível em Unamuno, admirador extremo da obra e vida cervantina. Augusto que até aí vivia numa névoa com os desejos amorosos inibidos e auto-reprimidos, logo se sente atraído pela engomadeira de sua casa, Rosário, a quem tenta convencer a fazer uma viagem. Rosário também se apaixona. Eis que surge o eixo central da novela, extremamente bem arquitectada por Unamuno. Eugénia procura Augusto, dizendo-lhe que tudo tinha sido um erro, aceitava a oferta gentil que ele lhe tinha feito e que gostaria de casar com ele, mantendo sempre o respeito. Seria um casamento por conveniência e isso é dito logo a Augusto, isto não o inibe de aceitar o pedido. Augusto passa a visitá-la com mais frequência ansioso pelo casamento. Eugénia sugere-lhe que com as suas influências arranje um emprego para Maurício, mas um emprego bem longe, para ele não os voltar a encomendar. Augusto consegue um trabalho para ele, bem longe na província. Logo é recebido por ele, que agradece a Augusto a oferta generosa de um posto de trabalho. Deseja boa sorte ao futuro casal, e diz que se apaixonou por Rosário, que vai viver com ela no campo. Augusto desabafa com o seu amigo Vítor, e as conversas com Vítor são o eixo central da novela, a espinha dorsal de toda a construção do texto.
Augusto recebe poucos dias depois uma carta de Eugénia, a dizer que tinha ido para o campo viver com Maurício, acabando a carta desejando-lhe boa sorte, agradecendo o emprego de Maurício e dizendo que Rosário voltaria para a cidade. A partir daqui todo o mundo de Augusto desaba. Vai ter com Vítor, que acaba de ser pai tardiamente e começara a escrever uma novela. O diálogo que aí tem com Vítor é de uma profundidade humana enorme, vários temas filosóficos são invocados por Unamuno e são referidos pelos dois amigos numa conversa corrosiva e cheia de sarcasmo. Vítor diz-lhe: “Serás apenas um mero espectáculo de ti mesmo” . Tudo isto se passa no capítulo 30, parte do texto em que Unamuno mais leva ao extremo a metafísica de Victor e a intensidade do diáologo – “É a comédia Augusto, é a comédia que representamos diante de nós próprios, o que se chama o foro interno, fazendo ao mesmo tempo de cómicos e de espectadores. E no palco da dor representamos a dor e parece-nos um descontrolo que de repente sintamos vontade de rir. E é quando mais sentimos vontade disso. A dor é uma comédia, uma comédia!” . Os comentários de Vítor são inteligentes e perspicazes, mas azedos para Augusto já muito fragilizado que pergunta: “E se a comédia da dor leva alguém a suicidar-se?”: Pergunta Augusto, “É a comédia do suicídio”refere o amigo agravando o estado de desespero de Augusto. Unamuno tinha já feito ensaios de filosofia e psicologia sobre o tema do suicídio e aproveita em “Névoa” por explorar o tema através da ficção. É neste capítulo que de uma forma subtil e inteligente Victor aconselha o suicídio ao amigo, é neste capítulo que o espírito mais corrosivo da alma humana é explorado de forma inteligentíssima por Unamuno; Augusto sente-se desesperado, no fundo do poço. O Amigo diz-lhe: “Devora-te” já antes tinha dito “ A tua única saída é devorares-te a ti mesmo”, “Queres dizer que me suicide? – Nisso não me quero eu meter, adeus”: Assim Victor despede-se e assim termina o capítulo 30. No capítulo seguinte, Augusto decidido a praticar o suicídio pretende falar com Miguel de Unamuno, é aqui que o autor de “Névoa” entra também como personagem decisiva da sua própria novela. Augusto conhecendo os ensaios de Unamuno sobre o suicídio decide ir até Salamanca encontra-se com o autor que lhe deu vida como personagem: É recebido por este no seu escritório-biblioteca. Aí tenta aconselhar-se perante um dos grandes estudiosos do suicídio até à época, Unamuno diz-lhe que conhece bem a sua vida, porque foi ele quem a criou. Refere que Augusto não passa de uma mera personagem da sua novela. Augusto fica incomodado e diz que mesmo assim, não existindo como pessoa, mas sim como personagem se vai suicidar, mas Unamuno diz não lhe conceder o suicídio, como criador pode fazer da sua personagem tudo aquilo que quiser e não lhe apetece que a sua personagem Augusto, se suicide. Augusto não aceita o capricho do seu criador, e volta-se contra ele. Se não me dás o suicídio, eu mato-te. Unamuno alerta-o para o facto de este não o poder matar e reduz Augusto à sua insignificância de personagem, alguém que não vive por isso também não pode morrer, muito menos matar. Unamuno diz que lhe vai conceder a morte mas de uma outra forma, vai morrer assim que chegar a casa, vai escrever e isso acontecerá. O espírito de Unamuno é aqui extremamente aguçado e todo o capítulo está repleto de referências filosóficas sobre a existência. Augusto não existe, Unamuno não existe – estão perdidos numa névoa. Augusto volta para casa, no comboio reflecte sobre a sua vida como personagem. Chegando a casa é acolhido pelos seus criados que o vêm branco, extremamente pálido, Augusto pede que lhe sirvam a ceia e come, come desesperadamente “como logo existo”pensa para si, não se conformando com a sua existência como mera personagem. Alguém que se queria suicidar e que assim que Uniamuno diz que o vai matar, apenas deseja viver “quero viver viver viver” Diz para Unamuno, o seu criador. Aqui o novelo tecido por Unamuno sobre o suicídio como fenómeno é brilhante – alguém que ainda há pouco queria morrer, quando sabe que isso vai acontecer, desiste e apenas quer viver – É de uma perspicácia enorme e muito nítida a reflexão que Unamuno faz sobre o desejo do suicido. Personagem e criador encontram-se, recheando no seu diálogo todo o capítulo 31 de um nível dramático delirante. Augusto morre em sua casa, talvez por comer compulsivamente pressentido a morte: “A morte do meu amo foi um suicídio, apenas um suicídio” diz o criado depois de ver o corpo morto de Augusto.
Aqui regressamos ao início, Unamuno considera Dom Quixote e Sancho Pança mais reais do que Cervantes, e em névoa cobre a narrativa de uma extrema discussão filosófica e de paradoxos: sobre existência/inexistência; Vida/Morte; Vígilia/Sono; Real/Irreal. Com uma inteligência acima do seu tempo e uma criatividade aguçada Unamuno alicerça no trama da sua névoa, toda a sua filosofia.
A tensão é evidente em toda a novela; Victor, o amigo confidente de Augusto, é quem escreve o prólogo à obra. Há assim uma confidência notória entre Unamuno e uma personagem da novela – Unamuno pede a uma das personagens da ficção que escreva o prólogo da obra, e aquilo que Unamuno relata é um pós-prólogo – Toda esta ligação entre sonho e realidade – Vida e ficção é arquitectada por Unamuno de forma a que Névoa deiche muitas portas em aberto a futuras interpretações: Névoa é uma novela mas também um pós-prólogo onde ficção e realidade se mistura; Unamuno como narrador e escritor é também personagem, personagem confidente de Vítor que aconselha o suicido a Augusto. Não deixa de ser sublime que assim se atinja um efeito de ficção suprema, ficção levada ao limite, às bordas da realidade. O que é névoa? O que é desejo? O que é realidade e o que é sonho? O efeito meta-literário está bem patente na parte final em que Augusto discute com o seu criador qual é o seu papel na vida ou na novela. Vítor diz a Augusto que está a escrever um romance, e depois explica-se melhor, não é um romance nem uma novela, é uma “nivola”, face à curiosidade de Augusto em saber o que é uma “nivola”, Vítor explica que é um texto narrativo em que as personagens ganham vida, um texto em que abundam os diálogos e se discute tudo até tudo não ser nada. É este o efeito que “Névoa” dá, a construção de um texto dentro de outro texto, fenómeno que mais tarde inspiraria em muito autores como Borges ou Enrique-Vila Matas. Névoa lança os alicerces de uma ficção nova, uma ficção que se interroga enquanto tal, reinventando e revitalizando todo o papel da narrativa. Névoa é um exercício de uma habilidade/coerência/ perspicácia narrativa enorme e nele Unamuno leva o exercício ao limite do seu próprio estilo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ode que ferve

Ode que ferve
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Vários comboios se descarrilam dentro do meu peito, várzea
à noite com muitos pirilampos acesos:
fervem e cruzam-se todas as linhas -
uma pirâmide de olhares cruzados em fogo,
muitas rotundas, auto-estradas, viadutos,
linhas de metro, passa estridente um comboio a alta velocidade, bebo toda a cidade
e caio rotundo para o chão -
sinto o suor de todos, o doce espasmo de uma jovem etrusca e todo o
Sol a incendiar-te o sorriso: fizemos um pacto com ele, com a vida com o futuro (Comboio estranho que derrete) fizemos um pacto com tudo que fluí, as linhas entrelaçaram-se, sinto a tua pulsação no meu peito e beijo-te os pulsos, a ansiedade nervosa da cidade, o doce espasmo das borboletas e a
Contracção de cada recém-nascido que parte –
A febre recheia a cidade –
O peito cheio de praças e cidades inteiras por dentro, viadutos túneis, contigo em cada esquina, dentro de cada café – com o pôr-do-sol dentro dos pulsos – a injectar o sol líquido no peito, não há mais caminho para trás – tenho a tua sede de futuro, são seis e vinte da manhã e a cidade acorda e adormece ao mesmo tempo – Sinto o calor de todos os que aquecem – A cidade a subir-me pela espinha dorsal, como uma nuvem branca, quando te abraço faço um pacto com a Vida
A cidade chama por nós e faz nós dentro de nós, tudo flui a uma velocidade frenética e todos os poetas futuristas, italianos, russos, franceses, portugueses, espanhóis levantam a cortina pesada da noite à velocidade do dia – enchem os teus olhos de sol – bebo por eles toda a cidade, todos eles sabem quanto te amo (cidade industrial, ceroulas, pastor alemão, civilização assustada, seringas e preservativos no chão, cave com vários fundos húmidos) a boca cheia de vidros – lambo-te o peito, os pulsos, os dentes, a língua (uma abelha na auto-estrada) o relógio de sol funciona à noite – se formos rápidos e seguirmos o dia – quando se patina sobre gelo fino a velocidade é a única salvação – e aqui cito todos os que não disseram a frase porque a sabem e sabem que o tempo corre – Sinto todo o desconforto dos cães à toa antes de serem atropelados
estou nas mãos dos fabricantes de carros que atropelam os cães, nas mãos dos operários, nos muros contra os quais urinam, os operários com as suas mãos – com a linha da vida a arder até ao pulso, e no fim do dia as mesmas mãos com a linha da vida a arder, ou várias linhas que se cruzam, a segurar o pulso da mulher, a acordá-la, a segurar o pulso de todas as mulheres dos operários – preciso tanto de calor – sou a sede, a raiva, o medo, a Vontade líquida de estar dentro de ti, sou líquido e fervo por ti dentro, amo os teus olhos a tua boca os teus dentes os teus pulsos os teus medos as tuas inseguranças as tuas dúvidas, os teus tornozelos, a tua saliva, a tua língua, os teus olhos, a tua boca, os teus dentes, amo os teus braços, as tuas mãos, braços, pernas, pés, e atravesso a peito a tua nuca quente, o teu peito a nado, sou líquido – vejo pelos teus olhos – todos – beijo-te os tornozelos, se penso em escrever um poema sobre o fogo lembro-me da bombeira voluntária de vinte e um anos que morreu a combater os fogos deste Verão – continuamos a subir – são 6:35 da manhã e a cidade acorda por ti adentro
Vejo por trás de ti
Por trás de nós
Por dentro de nós,
a cidade acorda: o sol dos teus olhos a injectar-me no peito uma Vontade Nova – Em tudo Nova – Amo tudo o que ferve
a noite láctea que te atravessa o peito de Calor
Ode que ferve e liga pelo skype,
nado por ti adentro

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Dizia-se em Oachaca

Falava-se em Oachaca da tua sede e de uma menina que injectou petróleo no peito – Cristalizou da sua boca um líquido em fogo a formar-se no canto do lábio em ponto de açúcar, em ponto de sol e fuga e conjunto de limões e conjunto de homens que acedem os faróis: e descia da sua boca, pela casa, pelo chão, descendo as escadas, descendo o passeio, descendo a montanha, e pela montanha abaixo descia um sol líquido adocicado pela memória de todos – toda a memória do mundo a descer como um degelo solar pela montanha abaixo, todas as montanhas abaixo: À beira do mar pensava-se que o Vesúvio tinha irrompido; Todos saíam para os seus trabalhos e acendiam todos os faróis vermelhos que anunciam a nova era e os faroleiros entravam com uma mensagem nova, e as mulheres dos faroleiros iam aos faróis levarem um tuparware com sopa e trazer a roupa suja para levar, e sacavam a roupa suja e voltavam a levar a roupa suja. E faziam amor com eles no cimo de todos os faróis. E da montanha descia a memória em direcção ao mar, em ponto de sol, em ponto de fuga adocicada: Fizemos um pacto com a vida e com tudo quanto flui. A santa injectou petróleo e cristalizou da sua boca um fio que caía ardente – Todo o sol, carregado de sal e doçura a entrar na veia de cada heroinómano, de todos os amantes… Iam para perto dos faróis: às seis e trinta: por baixo da ponte da Arrábida um carro estacionado com dois amantes, os vidros embaciados. Depois ele abre o vidro e acende um cigarro de haxixe, o vento do mar entra-lhe no carro e bate fresco e quente ao mesmo tempo na cara dos dois. Ela baixa-se, encosta-se contra o peito dele. Sente-lhe o coração. Leve e seguro. Ele passa-lhe suavemente as mãos pelos cabelos. Beija-lhe as orelhas. A menina em directo para a CNN a injectar leite condensado no peito para afastar todas as nuvens que são rios inteiros em forma de vapor a flutuarem. Não era o quê? Dizia-se o quê? Em Oachaca. Falava-se de febre e limões, de beijos na boca que podem não acabar, de línguas entrelaçadas, de mãos dadas, de mergulhos no mar. Falava-se de Pedro Abellardo e Heloísa, de Mariana Alcoforado e de Alejandra Pizarnik.
Diziam as raparigas de cabelo curto, com a boca cheia de cerejas negras, que o sol podia um dia não vir. Os Atlantas esperam-no, fazem um pacto com ele, nós com a vida. Créme de la créme pela montanha abaixo. O padre de Hiroshima a apanhar o sol no fundo da montanha. O padre de Hiroshima a meter um bocado na boca. A beber o degelo: a apanhar as sombras do chão. A prendê-las com molas no estendal - E o padre de Hiroshima, como a mulher dos faroleiros e dos cortadores de carne,, a estender também a sombra dos cogumelos e dos prédios que derreteram para o chão e a sombra dos lírios e dos corvos e a pegar fogo com o seu esqueiro, às sombras das girafas, de todos os homens, animais, plantas e coisas: Adora, como todos a palavra “húmido”e o seu deus não é palavra e não se escreve por palavras e não sabe ler nem escrever. E ler nem escrever ajuda a encontrá-lo e ler e escrever não é nenhum deus: Dizia-se em Oachaca que o sol viria sempre e isso chegava aos homens que levavam os seus burros pela manhã nos caminhos de Oachaca. Passava um carro, um camião, os dois amantes por baixo da ponte Arrábida. Vão à bomba de gasolina comprar tabaco e cerveja em lata. Voltam para o carro abraçados. Dizia-se em Oachaca que o sol lhes ia entrar no peito: Dizia-se em Oachaca que nós somos todos os outros. Uma roleta russa de mel, para diabéticos enquanto descem flocos de neve para dentro das bocas negras. Um nevão que cobre África. Falava-se em Oachaca da minha vontade de te abraçar. Falava-se de um derrame, na artéria do coração, um derrame de petróleo doce e branco como o leite condensado ou o leite gordo das baleias. Um petróleo injectável: Falava-se disso em Oachaca enquanto todos os carros passavam para o trabalho. Falava-se com febre e as mãos a tremer, outras vezes com calma e com a ajuda do mezcal e tequilla. A sombra dos lírios violava a sombra dos homens. E a febre dos homens entrava nas mulheres: Dizia-se tudo isso em métrica sáfica e escrevia-se nas paredes dos cafés, das casas, das escolas e de todos os edifícios públicos, o quanto te Adoro. O Padre de Oachaca ouvia e secava as sombras e secava os rios e esvaziava os mares com o seu balde de plástico: um trabalho como o de Sisifo. De cada vez que se contém o choro os rios sobem mais um pouco. Falava-se em Oachaca da febre dos búzios, de pernas entrelaçadas, de braços entrelaçados, de estrelas entrelaçadas. As mulheres dos pasteleiros acordavam a meio da noite, com as suas meias de lã grossa, para virem abrir a porta à estrela que com todas as suas pontas batia em cada porta, e entrava dentro das casas: Uma estrela feita de solidariedade, que cresce quando as pessoas se abraçam, que é só febre, sensação e calor.