segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Rosa Maria Martelo: A Porta de Duchamp




A Porta de Duchamp – Rosa Maria Martelo: Averno, Lisboa 2009




“Quando vivia em Paris, no pequeno apartamento da rua Larrey, nº 11, Duchamp fez instalar dentro de casa uma porta que não podia estar aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo” Assim começa “A Porta de Duchamp” de Rosa Maria Martelo, narrativa fragmentada de 17 partes, todas elas com um ponto em comum: as portas como ligação / o que abre / o que fecha - O que mesmo que esteja fechado está aberto. A reflexividade é marcadamente forte neste texto, injectado de uma emotividade sensorial muito acesa e de uma profunda e muito viva perspicácia. Logo no início, as citações iniciais revelam um pouco da narrativa:

“Ouvi bater à porta.
Não há porta. Porque haviam de bater à porta que não há?”
Mário Cesariny

“Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta, e me possa abrir com razão a inteligência do mundo? “
Álvaro de Campos

Duchamp, Fernando Pessoa, Cesariny abriram muitas portas, Rosa Maria Martelo também com este livro, sobretudo muitas perspectivas. Trata-se de um livro múltiplo, coerente e vital, sobretudo de grandes revitalizações.
A reflexão sobre a passagem / o abrir caminhos, é muito atenta e inteligente “Uma porta que ele abria quando a fechava (fechada mesmo aberta como, alguém disse acontecer com os livros”: A frase incluí reflexão sobre o fenómeno literário que continua no texto seguinte: “Há quem fale de livros entrados na carne, como agulhas, de venenos incolores descompassando veias”
O elemento – entrada / saída é revisitado em outras partes do livro – Entrar com força, sair com força. A viagem prossegue com outras pequenas histórias interligadas por este factor, A fotografia está presente. A fotografia usada como registo frágil, suporte perene, pode ser uma das múltiplas aberturas / perspectivas e interpretações do texto “Lama”: “O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas, neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas no meio da lama”. Em “Infância”, há uma Imagem fortíssima de grande carga sensorial mantendo um registo único: “subtrair à passagem das ondas e do tempo pedacinhos de nada, menos que conchas (búzios partidos, por exemplo de que ficara o centro em espiral). Há uma revitalização da infância: portas que se abrem e fecham na memória e são invocadas (abertas / ou fechadas) nunca por completo: “nada pode ser verdadeiramente deste mundo”. Em “Filme” são invocado Gregory Peck, Ingrid Bergman e Hitchcock: “É então que Hitchcock abre porta atrás de porta, naquele movimento contínuo de certos filmes que aceleram a vida das plantas para as vermos nascer e abrir e abri mais, mas não morrer”. É de grande importância o uso da repetição e a pontuação em “folhas nascem e abrem) e abrem) e abrem)” O parêntesis é fechado, mas não aberto – A abertura está na frase. Outros recursos de grande vitalidade criativa são usados na criação de palavras por repetição e hífen, como “porta-porta”: As palavras abrem.

Muito mais poderia ter sido dito de um livro que é uma porta aberta e de um livro que é uma porta fechada (aberta e fechada ao mesmo tempo). É um livro que Abre muitas portas / perspectivas, onde se deve entrar e sair várias vezes.

David Foster Wallace


A Rapariga de Cabelos Estranhos – 1989
David Foster Wallace



Trata-se de um livro de contos. Dez no total. Neste ensaio, serão analisados dois dos mais representativos: “Pequenos animais sem expressão” e “A Rapariga de cabelos estranhos” Conto que dá o novo ao livro.

Pequenos animais sem expressão



“Pequenos animais sem expressão” trata de uma rapariga Julie, personagem principal, irmã de um rapaz autista. São filhos de um casal conturbado. O pai sai de casa e a mãe é uma pessoa visivelmente perturbada, incapaz de prover à educação dos filhos. A educação do rapaz, carente de cuidados especiais é feita por Julie, ainda muito nova. A mãe está ausente. Julie passa a infância sozinha com o rapaz, no mesmo quarto com o mesmo livro. Os amantes que se aproximam da mãe e frequentam a casa, rapidamente se intimidam com a presença do rapaz autista. Julie e o irmão são abandonados pela mãe, em estado de grande fragilidade. O rapaz é internado numa clínica com o auxílio de alguns familiares. Julie faz todo o tipo de trabalhos para sobreviver. Desde pequena que passava a vida a ler obras de carácter geral sobre diversas curiosidades, vida animal, geografia, ciência. Obras para a infância. Julie concorre a um concurso de televisão, baseado em perguntas de cultura geral. Como vence o primeiro, vai no seguinte e volta a vencer. Vence sempre e por isso torna-se popular no mundo da televisão americana. Acerta em todas as perguntas. Entra aqui a capacidade fortemente imagética de David Foster Wallace, cujos cenários de muitos dos seus contos e novelas é o mundo dos bastidores da televisão, sobretudo das grandes produções da televisão americana. Noutros contos deste livro é abordada a questão dos talk shows. Foster Wallace aborda o fenómeno televisivo como uma realidade paralela, construída, mas recheada de caminhos escuros, entre eles a exposição da vida privada, levada ao limite. O oposto entre estes dois mundos é muito bem explorado neste conto. Uma das técnicas de som, Faye, do programa de televisão apaixona-se por Julie e as duas começam a namorar. A técnica de som procura sempre desculpas para o amor lésbico, Julie não procura desculpas. O apresentador do concurso, Alex, figura pública da televisão americana, frequenta um psicanalista, está inconscientemente apaixonado por Julie. Um dos métodos de terapia é a livre associação de palavras. E é neste exercício, que David Foster Wallace se esvai de forma absoluta, o conto possuí muitas livres associações de palavras, sobretudo por parte do apresentador, que vão desde o aforismo a frases de uma intensíssima carga erótica e sensorial. O irmão de Julie vai também um dia ao concurso e acerta em todas as perguntas sobre animais. Julie e o irmão tornam-se populares estrelas de televisão, com a perenidade que isso envolve. Mas as suas relações humanas privadas são exploradas por Foster Wallace até ao cúmulo da emoção. As descrições dos sonhos de Alex são relatos absolutamente geniais.

A rapariga de cabelos estranhos

Este conto é um relato na primeira pessoa de um advogado de uma grande empresa e do seu grupo de amigos punk. Todos vão a um concerto de música clássica, e é durante o concerto que se passa toda a acção deste relato. David Foster Wallace retrata uma sociedade de extrema, colocando-se na pessoa (voz, narrador principal) dos estereótipos que mais detesta. A personagem principal considera-se a si própria bonita (orelhas bonitos, cabelo perfeito). Diz para si próprio ser um homem de sucesso com muitos bons amigos. Durante o concerto conhece outros dois rapazes punk que os amigos lhe apresentam. Todos tomam LSD, menos ele. Antes do intervalo sai um pouco para o hall da sala de espectáculos com outro dos seus novos amigos e este pergunta-lhe como é que ele consegue ser tão feliz. E Diz – Se me explicares de onde provém a tua felicidade natural deixo-te ejacular para cima de mim e da minha namorada. Ele foge à pergunta, fala muito, três páginas mas fugindo à questão da facilidade. Acaba por dizer – Não respondi à tua pergunta, mas se te der 10.000 dólares deixas-me ir com a tua namorada. O relato é quase sobrenatural, completamente magnetizado pela presença no concerto de uma rapariga de cabelos muitos estranhos (a descrição não é feita) É apenas referido que são estranhos e isso contagia o grupo dos amigos a quem o LSD bateu forte.

David Foster Wallace consegue levar as descrições ao extremo, as descrições roçam a alucinação e em tudo provocam estados alterados. Falamos de alguém que percebe como ninguém o que é hiper realidade e a leva ao limite. Todos os contos parecem um riso interno e condensado, um Concentrar muito grande de emoções – Não só a partir das descrições extremamente sensoriais, mas também das elipses inteligentes.
Estamos perante alguém de um sensibilidade profunda.

Nuno Brito

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Café Del Greco

O mancebo entrou no Café Del Greco e pediu organino à marinheiro e o empregado disse: aqui não servimos música tocada por marinheiro, e também não servimos os marinheiros que tocam música, só servimos pasteis de chaves com muito fermento e cerveja também com muito fermento. O mancebo disse: Quero que as coisas com fermento se fodam!! Foi até à máquina de dar dinheiro, no fundo do café e meteu lá dinheiro e ficou sem o dinheiro porque não há máquinas de dar dinheiro. Pediu um prego no pão e o dono do Café del Greco deu-lhe um prego no pão. O mancebo saiu e foi ver o mar, a lua estava cheia e o mar tinha-se ido embora, depois o mar voltou e o mancebo chamou por um mexicano e o mexicano veio a fumar pela praia, com um passo muito lento. O mancebo e o mexicano sentaram-se na mesma duna e o mar sentou-se também numa duna. O mar pediu lumes ao mancebo e o mancebo disse: Eu não tenho lumes – E o mexicano disse: eu tenho lumes – E o mar começou a arder, e depois calçou umas botas de saltos altos e dançou como um tornado de fogo, e o mexicano disse que o mar era sexy e masturbou-se enquanto o mar dançava – É que dá-me tusa! Fodasse ver o mar dançar – Voltaram ao café del Greco e comeram dois pregos cada um e dois finos cada um.


Nuno Brito

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Quarta transcrição

Pensou ter acabado de assistir a Sunset Boulevard e a Mama Roma, guardando na memória, as imagens fortes que o ecrã LCD transmitia.
Notou, sem que o proprietário o avisasse que não estava na Casa del Cinema, mas numa loja rara e não era para um ecrã que olhava, mas para um aquário com motivos barrocos. Com pequeninas esculturas de Neptuno e ninfas que os peixes riscados contornavam para passar o tempo, escondendo-se atrás do corpo de uma seria de pedra, passando entre as pernas de Neptuno ou de um D. Quixote de pernas compridas e douradas que decorava o fundo aquário. Havia também algumas pontes, o proprietário era coleccionador de coisas que ligam. As pontes em miniatura não ligavam nada, porque estavam no findo do aquário, serviam para alguns pequenos peixes eléctricos descansaram nos tabuleiros inferiores. Réplicas em miniatura da ponte de São Francisco, pontes de Hamburgo, de Paris, muitas de Eiffel. Havia também um Ferrari pequenino já a ficar oxidado e a perder a cor vermelha. Havia também uma réplica do Palácio dos Reis de Granada – Os peixes eléctricos entravam no Alhambra ou no Palácio de Carlos V e descansavam de barriga para o ar nos claustros internos. Uma réplica também das torres gémeas, habitação de um tubarão martelo e pequeninas medusas japonesas que, ao dormirem no seu interior, iluminavam todas as janelas de uma carga eléctrica fortíssima – Havia uma miniatura de um dos reactores de Chernobyl e um castelo de Neuchvenstein marinho, protegido por dois sátiros de sílex. Era como se o proprietário quisesse reproduzir toda a História da Humanidade mas debaixo do mar. Pequenas estátuas de actores de cinema mudo ou de actrizes famosas da Brodway decoravam o fundo de um ou outro aquário. Num deles, a recriação com soldadinhos de plástico de uma batalha do Vietname, com os bonecos caídos ou levantados, as mulheres segurando os filhos contra o peito de plástico – Os muros caídos com pequenas anémonas em cima –O proprietário tinha um acordo com alguns artistas plásticos, encomendava-lhes em gesso ou plástico, (dependendo se era para aquário de água quente ou aquário de água fria)a recriação de uma batalha, de um acontecimento épico – Um episódio da guerra de Tróia, onde se via a fuga de Eneias decorava um outro. Noutro maior, a recriação mitificada de uma aparição mariana e da entrada das tropas aliadas em Berlim, com o seu muro de espelho a reflectir os peixes que por isso se aproximavam, temendo o inimigo.
. O proprietário grisalho notando o seu interesse no aquário e no cinema novo, introduziu-o no mundo subaquático:
A conversa foi longa em galerias da parte de trás da loja: Com grande variedade de espécies. Saiu e telefonou-me. Contou-me por alto a história dos filmes – Tudo depende das perspectivas – Disse-lhe. Está na altura de voltar ao Porto e acabar a sétima parte de “A Estrela” –Um de nós, deve concluir essa ponta que une todas as outras.




*


Foi então que o proprietário, sem cair na entropia de misturar várias histórias, lhe contou no fundo das galerias onde imperava um grande aquário decorado com a réplica de um castelo búlgaro de formas estranhas, algumas histórias sobre o suicídio no mundo animal – Não se conhece o suicídio na vida marinha – Disse, como se fosse um aviador marinho – Há três animais, que o fazem – O escorpião, os pequenos helicópteros, (insectos voadores), e os homens (que o praticam de forma mais variada e aleatória). O escorpião, em caso de fogo ou de perigo de morte espeta o ferrão na sua própria carcaça negra, com força – Aqui o proprietário estremeceu como um peixe sem espinha que se via em aflição, encurralado num buraco de uma rocha por um polvo de grandes tentáculos – Riu-se e fez uma expressão engraçada,, que manteve acesa, para que a história não se tornasse muito tétrica – Contou-me uma história da infância, quando passava os verões no campo, em casa dos avós – Com os primos costumava caçar escorpiões – Depois faziam um círculo de gasolina em volta do escorpião, muito rápido acendiam o círculo com um fósforo e desenhava-se no chão um círculo de fogo que rodeava o escorpião, que dançava assustado, até à decisão de espetar o ferrão. Os primos olhavam com os olhos bem abertos – Tinham acabado de levar ao suicídio um animal perigoso, cujo veneno pode matar os outros ou a si próprio.

Sobre o segundo animal suicida, foi mais breve – os helicópteros: Contou-me como eles, em situação de perigo, chocavam uns contra os outros praticando uma espécie de suicídio duplo em situações de perigo, como grandes incêndios ou tornados, um suicídio colectivo e binário, feito aos pares – Contava-se no País Vasco que da colisão entre dois helicópteros podia nascer uma espécie de faísca, pelo embate forte e aéreo – Essa faísca caía sobre a terra, antes dos dois insectos já mortos, e essa faísca servia de semente – E no local do suicídio aéreo, nascia na terra um girassol. Daí um suicídio que dá vida – Como de uma forma ou outra o suicídio de um escorpião enche de vida a casa da avó, com os primos e primas a correrem excitados.


Antes de prosseguir com a história do suicídio no homem, o mais complexo e múltiplo, contou-me três histórias sobre o incesto na vida marinha, e como acreditava que a sua avó continuava a lavar a louça agora no fundo mar, onde é mais fácil de o fazer, na água quente das Bermudas – A sua avó e muitas outras a ouvirem a música dos golfinhos. Por momentos pensei que já não prosseguisse a história do suicídio na vida animal e estive certo, porque essa, pela sua complexidade, ficou por contar.




Nuno Brito

Festa campestre, o girassol, o gelo

Julian Artl passou uns tempos em minha casa. Era editor de uma revista de literatura que começava a receber boas críticas. Escreveu uma novela fragmentada e dois livros de contos. Nunca os publicou, só tinha um exemplar de cada uma das obras, com encadernações baratas. Apagou os ficheiros do computador. Nunca os tinha enviado por mail a ninguém, embora me tivesse lido vários contos e partes da novela ao telefone. Num domingo de chuva foi até à foz, estacionou o carro e atirou os três exemplares para o fundo do rio, na parte onde saíam uns esgotos e onde as tainhas saltavam e lutavam pelo seu pedaço de lodo – Como se fossem escritores – Disse-me ao telefone Artl – As tainhas pareciam escritores – Ri-me, não da frase em si, mas da sua voz, de quem tinha bebido muito. Falou-me sobre tainhas e literatura acidental. Imaginei as pastas de papel no fundo do rio. Alguns dos textos mais sinceros e completos que tinha lido, forravam o fundo do rio. Um dos contos falava de uma borboleta – Uma borboleta escritora.

Enquanto tinha estado em minha casa, tinha por hábito, cozinhar gelatina ao fim da noite. Gelatina de morango com rum. Comia enquanto via um filme, não falava muito. Às vezes quando chegava a casa, via-o a cozinhar a gelatina artesanal. Comprava no supermercado, folhas de gelatina de marca branca, e com um marcador azul, usada para escrever nos cd’s, escrevia nas folhas de gelatina alguns contos completos. Um dia vi, seis folhas de gelatina que serviam de páginas a um conto. Li todo o conto. Artl estava no quarto de banho, não reparou que eu já tinha entrado. Toda a casa cheirava a haxixe e o espanta espíritos estava desalinhado. A panela estava cheia de água e de rum.


Percebi porque é que o meu dálmata estava doente. Artl dava-lhe gelatina de rum e morango enquanto eu estava a trabalhar. Nunca saía de casa, por mais que eu lhe dissesse, para ir ao parque, ao estádio, conhecer a cidade, ver igrejas e museus, Artl era licenciado em História de Arte.
O cão comia a gelatina feita com as folhas onde estavam alguns contos inéditos de Artl. Reparei no seu prato as bordas da cor do morango que ele lambia até à aflição. Imaginei, que Artl pusesse também xanax esmigalhado na gelatina ou uma ou outra droga legal que mandava vir pela net. Para o estômago do dálmata a mistura devia ser corrosiva. Tinta de marcador cozida na água, rum e muito açúcar. Reparei que o dálmata dormia na varanda de barriga para o ar. Parecia estar a ter um sonho erótico. Talvez de uma cadela spaniel. Imaginei também Artl a aparecer no sonho do meu cão, com uma taça de gelatina e a Spaniel ao lado entuzada ao lado do meu animal. Chamei-o várias vezes mas não acordou. Deixei-o dormir e liguei a televisão para ver o resumo das notícias do dia. Artl saiu do quarto de banho. Sentou-se à minha beira. Fiz de conta que não tinha visto o seu conto. Falamos um bocado. Depois disse-me que estava a fazer gelatina e foi à cozinha. Pôs o rum a cozer com as folhas onde estava o seu conto.

Alguns contos consegui salvar nos dias seguintes. Enquanto Artl dormia descobri três desses contos. Doze folhas no total escritas com uma letra perfeita. O conto falava de um homem que vai ver uma exposição de escultura clássica. As personagens, as estátuas do museu falavam entre si sobre o visitante, que era uma atracção. Falavam dos seus calções, do seu penteado. Como se o museu fosse móvel e fosse todas as pessoas que entravam. Um museu único e vivo, sempre aleatório de gente que entra e sai. Trouxe-o para a beira do computador e transcrevi-o. No fim havia um pequeno aforismo sobre a perenidade do suporte.
Art foi embora três dias depois. Ao contrário daquilo que pensava, a saída de Artl foi para o meu cão, indiferente, como se ele nunca tivesse entrado. A sua passagem na literatura foi feita do mesmo modo, como se nunca tivesse escrito.
Transcrevi de uma folha de gelatina “Três caras no gelo”. Nunca mais tive notícias suas


Três caras no gelo

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Ao lado da sepultura de Adriano há um ringue de gelo, um castelo e um homem estátua. Há também uma ponte com muitos anjos, um anjo de bronze no cimo do castelo, e um marroquino que vende guarda-chuvas. No ringue de gelo está uma rapariga sozinha a patinar, como que por missão, repete-se (como que por missão) a rapariga parece a rapariga mais triste do mundo, mas cumpre a sua missão, patinar, ser triste, estar neste conto.
A rapariga patina e escreve um poema no gelo, que não aparece porque no gelo já há muitas riscas, tal como em muitos braços e na alma de muitas patinadoras solitárias. Há muitos riscos que se fazem, e sobretudo, os riscos não se podem apagar, aconselhou-me, um anjo, um verdadeiro anjo, que para apagar um risco, se tem que desenhar um novo risco por cima, seja na memória, nos braços, numa conversa, em toda a história da humanidade: Nada se apaga, tudo se constrói/escreve/ relaciona por cima. E há vários riscos e os riscos de baixo, que não cicatrizam, na (memória, nos braços na parede) vão perdendo em força, porque há informação nova que se sobrepôs. Amanhã vou fazer uma tatuagem, a imagem de uma rapariga que levanta voo agarrada a uns balões; Foi desenhada por Banksy nos muros da Palestina. Pedi na loja das tatuagens que ocupasse toda a parte de cima do braço direito.


Patinei durante a tarde toda, mais uma vez ele não ligou, ninguém passava ao lado do castelo, patinava sozinha, só um homem de chapéu estranho me olhava; Parecia a pessoa mais sozinha do planeta, tirava apontamentos, consigo ver sem os olhos, consigo patinar no gelo, e sentir o meu sexo quente, enquanto tenho uma visão de cima do castelo, do outro lado da ponte, vejo pelos olhos do que tira apontamentos, vejo o seu caderno quadriculado cheio de escrita nervosa e rascunhado. Vejo como se estivesse no Google World, no topo de um satélite, o homem estátua, os que olham o homem estátua, aquele indiano que o aguarda à entrada da ponte, porque sabe que ele vai passar ali e está a chover, e provavelmente vai comprar um guarda-chuvas, e isso dá-me riso. Escrevi um poema no gelo, metia as palavras “girassol”, “Perenidade” e meta-gelo” – Tudo me dá vontade de rir. Várias coisas ficaram por dizer, debaixo do gelo há um girassol …


Só me falta vender um guarda-chuva, aquele é americano, tem dinheiro, vou-lhe vender um guarda-chuva, sei por Alá, e depois vou para casa. Está frio. Está frio fodasse.

Julian Artl

Nuno Brito

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010