quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Elegia Nuclear

Elegia Nuclear



Os teus olhos são um duplo-poço onde mergulho e nado,
tal como o sol afundo-me neles, nasci antes da criação da rede,
quando os vários faxes das redacções dos jornais europeus emitiam um ´
barulho ancestral para comunicar a explosão de um reactor, o sol mergulha nos teus olhos, a terra quente aquece os teus pés, perco-me em ti,
nos teus olhos que vejo de uma perspectiva múltipla, irmã da memória e da sedução,
ver tudo ter fome de ver, virar páginas com força, o vento? O bater de uma porta? Os homens por trás dela. Atiraste os dados e saiu a vida, e atiraste os dados e saiu a Vida: Adoro-te, o mesmo pode ser dito em outros dialectos, em outras linguagens, no som dos golfinhos, no acasalamento das baleias, nos sons submarinos de um Mahler que procura uma ametista – Mahler está no céu, Papini está no céu, Bataille está no céu, seja ele bem fundo ou bem elevado, a obra perdura, não se podem apagar as riscas, a melhor forma de conservar um passado indesejado fora do alcance, é criar um passado com riscas mais claras, nada se apaga, tudo se reconstrói, cria, traça, fala por cima, e isto já foi dito – o miliagre não é uma laranja ser redonda, o milagre é as laranjas já serem esféricas, um paralítico, escorre-lhe azeite negro pelos beiços volta a cair no prato ou na babete, ou nas bordas das paredes do Universo, várias cores, resta-me a sinceridade e a saliva de todo o mundo, tenho sede de uma perspectiva múltipla, beijo-te o colo, os braços, as ancas, duas línguas entrelaçadas desde o fim da Etrúria, um abraço pré-hispânico em tudo moderno e contemporâneo da tempestade, repito-me, salto de textos para outros, escrevi sempre um mesmo texto, porque escolhes sempre motivos tão obsessivos, estrela contra estrela – na auto-estrada. Os braços apertados num abraço quente, a febre siamesa dos que aquecem, os braços entrelaçados num abraço quente, tudo o que aquece e acende, é múltiplo esse aquecer, mergulho e nada no duplo-poço, tal como Milton amo tudo quanto fluí e tenho pressa muita pressa de dizer tudo, de ficar com o palato preso numa única sílaba DAP DAH DAP DAH – Atravesso-te a bruços o peito, as ancas, a nuca, lambo-te as orelhas, e apareceu o Fernando Chinês, quer comprar haxixe, o Fernando Chinês com os seus olhitos em bico: Fomos de táxi ao Aleixo e na cave escura cheia de seringas no chão sentimo-nos como se tivéssemos inalado a Austrália toda, uma Austrália fluida e volátil, com um espelho no seu centro a reflectir cangurus e deserto vermelho para todas as direcções, a cada aspiração parecia que fumávamos não só um continente, mas a febre de todas as siamesas, os sonhos de todos os sósias, os cangurus dentro dos pulmões de vidro, os cangurus a reescreverem a história, expirámos, sentimos todos os nervos seguros, ele lê-me as cartas, diz-me que como escritor sou repetitivo e obsessivo. Tenho muitas imagens como a câmara escura, absorvo a luz do sol para tirar uma imagem perfeita, como se de uma grande angular, o acelarador de partículas está no meu pulso esquerdo, no meu pulso direito a tempestade, conto o minutos pelo tempo que o soro demora a entrar, um litro inteiro nas veias, tempo <á deriva, tempo que se inscreve em aulas de dança de salão, com muitos braços, ele dança bem, duma ponta à outra da Austrália, há um duplo túnel que se bifurca várias vezes, nesses nós encontram-se homens que consertam relógios e meninos que tocam carrilhões suíços, no metro as pessoas passam depressa, os carrilhões continuam a tocar, um ou outro anjo passa também, com os seus dentes cariados à procura de uma sensação de um todo. Aqueço-me à escala humana, a mais perigosa e maior, deserto líquido a entrar por ti dentro

sábado, 30 de outubro de 2010

Miguel de Unamuno: Névoa

Miguel de Unamuno disse sobre “Dom Quixote de la Mancha” que as duas personagens fulcrais, Dom Quixote e o seu escudeiro Sancho eram mais reais que o próprio Cervantes; com esta afirmação pode-se perceber tudo o que está implícito em “Névoa”: a novela tem trinta e três capítulos e um anexo final “Oração fúnebre em forma de epílogo”, para além disso dispõe de um prólogo, um pós-prólogo e um “prólogo à terceira edição, ou seja, a história de Névoa”: a novela é assim nada mais do que um pós-prólogo de Miguel de Unamuno, como autor da obra.
Logo no primeiro capítulo, Augusto, homem solteiro que vive dos seus rendimentos e a personagem principal da novela, sai de casa sem uma direcção definida. Logo vê passar uma mulher muito atraente, segue-a, repara que os seus olhos são muito sexys e cheios de vida; Segue-a até casa. Afasta-se um pouco e mal esta entra, mete conversa com a criada que está à porta, dá-lhe algum dinheiro em troca de informações, logo fica a saber que ela se chama Eugénia e é professora de piano. Nos dias seguintes volta a segui-la com a mesma obsessão. Uma das vezes em que passa pela sua casa, vê que de uma das varandas cai uma gaiola com um periquito, apanha a gaiola, não perdendo a oportunidade de poder entrar assim em casa de Eugénia; é recebido pela tia de Eugénia que logo lhe agradece muito e convida-o a entrar para a sala, logo aparece Eugénia, a tia apresenta-o como o salvador do periquito, mas ela trata-o com desinteresse e desprezo. Logo sai. O desprezo de Eugénia acende em Augusto um desejo ainda maior. Considera que até aí viveu numa névoa, e os olhos dela tinham-no despertado para o mundo. Acende-se nele uma enorme vontade de viver e de se aproximar de Eugénia. Escreve-lhe um bilhete que entrega à governanta. Fica a saber que ela tem um noivo o que o desanima mas não o faz baixar os braços: Apresenta-se novamente em sua casa onde é bem acolhido pelos seus tios. A tia intercede junto de Eugénia a favor de Augusto. Alertando-a para o desemprego de Maurício, o seu noivo, que considera mandrião e alertando-a para as boas qualidades de Augusto. Este percebe pelas conversas com a tia de Eugénia que esta tem uma casa hipotecada por dividas familiares, e que para recuperar a hipoteca tem de dar lições de piano embora não goste minimamente de música.
Augusto liquida a divida e refere isso aos tios. A casa deixa de estar hipotecada. Eugénia em vez de ficar contente, dirige-se a casa de Augusto insultando-o e tratando-o com desprezo, afirmando que este a queria comprar com a liquidação da dívida e que isso era uma forma baixa de conquistar uma mulher. Volta para junto de Maurício e convence-o a arranjar emprego para que se possam casar o mais cedo possível. Não aceita a oferta de Augusto e trata-o com desprezo. Mas a incapacidade de estar com Eugénia desperta os seus impulsos e desejos em relação ao sexo oposto, até aí adormecidos. Refere a Victor, o seu melhor amigo, que desde que vira Eugénia todas as mulheres lhe parecem belas. Aqui Unamuno influencia-se verdadeiramente por Dom Quixote e o seu estado de paixão por Dulcinea. Nota-se em “Névoa” que a influência de Cervantes é bem visível em Unamuno, admirador extremo da obra e vida cervantina. Augusto que até aí vivia numa névoa com os desejos amorosos inibidos e auto-reprimidos, logo se sente atraído pela engomadeira de sua casa, Rosário, a quem tenta convencer a fazer uma viagem. Rosário também se apaixona. Eis que surge o eixo central da novela, extremamente bem arquitectada por Unamuno. Eugénia procura Augusto, dizendo-lhe que tudo tinha sido um erro, aceitava a oferta gentil que ele lhe tinha feito e que gostaria de casar com ele, mantendo sempre o respeito. Seria um casamento por conveniência e isso é dito logo a Augusto, isto não o inibe de aceitar o pedido. Augusto passa a visitá-la com mais frequência ansioso pelo casamento. Eugénia sugere-lhe que com as suas influências arranje um emprego para Maurício, mas um emprego bem longe, para ele não os voltar a encomendar. Augusto consegue um trabalho para ele, bem longe na província. Logo é recebido por ele, que agradece a Augusto a oferta generosa de um posto de trabalho. Deseja boa sorte ao futuro casal, e diz que se apaixonou por Rosário, que vai viver com ela no campo. Augusto desabafa com o seu amigo Vítor, e as conversas com Vítor são o eixo central da novela, a espinha dorsal de toda a construção do texto.
Augusto recebe poucos dias depois uma carta de Eugénia, a dizer que tinha ido para o campo viver com Maurício, acabando a carta desejando-lhe boa sorte, agradecendo o emprego de Maurício e dizendo que Rosário voltaria para a cidade. A partir daqui todo o mundo de Augusto desaba. Vai ter com Vítor, que acaba de ser pai tardiamente e começara a escrever uma novela. O diálogo que aí tem com Vítor é de uma profundidade humana enorme, vários temas filosóficos são invocados por Unamuno e são referidos pelos dois amigos numa conversa corrosiva e cheia de sarcasmo. Vítor diz-lhe: “Serás apenas um mero espectáculo de ti mesmo” . Tudo isto se passa no capítulo 30, parte do texto em que Unamuno mais leva ao extremo a metafísica de Victor e a intensidade do diáologo – “É a comédia Augusto, é a comédia que representamos diante de nós próprios, o que se chama o foro interno, fazendo ao mesmo tempo de cómicos e de espectadores. E no palco da dor representamos a dor e parece-nos um descontrolo que de repente sintamos vontade de rir. E é quando mais sentimos vontade disso. A dor é uma comédia, uma comédia!” . Os comentários de Vítor são inteligentes e perspicazes, mas azedos para Augusto já muito fragilizado que pergunta: “E se a comédia da dor leva alguém a suicidar-se?”: Pergunta Augusto, “É a comédia do suicídio”refere o amigo agravando o estado de desespero de Augusto. Unamuno tinha já feito ensaios de filosofia e psicologia sobre o tema do suicídio e aproveita em “Névoa” por explorar o tema através da ficção. É neste capítulo que de uma forma subtil e inteligente Victor aconselha o suicídio ao amigo, é neste capítulo que o espírito mais corrosivo da alma humana é explorado de forma inteligentíssima por Unamuno; Augusto sente-se desesperado, no fundo do poço. O Amigo diz-lhe: “Devora-te” já antes tinha dito “ A tua única saída é devorares-te a ti mesmo”, “Queres dizer que me suicide? – Nisso não me quero eu meter, adeus”: Assim Victor despede-se e assim termina o capítulo 30. No capítulo seguinte, Augusto decidido a praticar o suicídio pretende falar com Miguel de Unamuno, é aqui que o autor de “Névoa” entra também como personagem decisiva da sua própria novela. Augusto conhecendo os ensaios de Unamuno sobre o suicídio decide ir até Salamanca encontra-se com o autor que lhe deu vida como personagem: É recebido por este no seu escritório-biblioteca. Aí tenta aconselhar-se perante um dos grandes estudiosos do suicídio até à época, Unamuno diz-lhe que conhece bem a sua vida, porque foi ele quem a criou. Refere que Augusto não passa de uma mera personagem da sua novela. Augusto fica incomodado e diz que mesmo assim, não existindo como pessoa, mas sim como personagem se vai suicidar, mas Unamuno diz não lhe conceder o suicídio, como criador pode fazer da sua personagem tudo aquilo que quiser e não lhe apetece que a sua personagem Augusto, se suicide. Augusto não aceita o capricho do seu criador, e volta-se contra ele. Se não me dás o suicídio, eu mato-te. Unamuno alerta-o para o facto de este não o poder matar e reduz Augusto à sua insignificância de personagem, alguém que não vive por isso também não pode morrer, muito menos matar. Unamuno diz que lhe vai conceder a morte mas de uma outra forma, vai morrer assim que chegar a casa, vai escrever e isso acontecerá. O espírito de Unamuno é aqui extremamente aguçado e todo o capítulo está repleto de referências filosóficas sobre a existência. Augusto não existe, Unamuno não existe – estão perdidos numa névoa. Augusto volta para casa, no comboio reflecte sobre a sua vida como personagem. Chegando a casa é acolhido pelos seus criados que o vêm branco, extremamente pálido, Augusto pede que lhe sirvam a ceia e come, come desesperadamente “como logo existo”pensa para si, não se conformando com a sua existência como mera personagem. Alguém que se queria suicidar e que assim que Uniamuno diz que o vai matar, apenas deseja viver “quero viver viver viver” Diz para Unamuno, o seu criador. Aqui o novelo tecido por Unamuno sobre o suicídio como fenómeno é brilhante – alguém que ainda há pouco queria morrer, quando sabe que isso vai acontecer, desiste e apenas quer viver – É de uma perspicácia enorme e muito nítida a reflexão que Unamuno faz sobre o desejo do suicido. Personagem e criador encontram-se, recheando no seu diálogo todo o capítulo 31 de um nível dramático delirante. Augusto morre em sua casa, talvez por comer compulsivamente pressentido a morte: “A morte do meu amo foi um suicídio, apenas um suicídio” diz o criado depois de ver o corpo morto de Augusto.
Aqui regressamos ao início, Unamuno considera Dom Quixote e Sancho Pança mais reais do que Cervantes, e em névoa cobre a narrativa de uma extrema discussão filosófica e de paradoxos: sobre existência/inexistência; Vida/Morte; Vígilia/Sono; Real/Irreal. Com uma inteligência acima do seu tempo e uma criatividade aguçada Unamuno alicerça no trama da sua névoa, toda a sua filosofia.
A tensão é evidente em toda a novela; Victor, o amigo confidente de Augusto, é quem escreve o prólogo à obra. Há assim uma confidência notória entre Unamuno e uma personagem da novela – Unamuno pede a uma das personagens da ficção que escreva o prólogo da obra, e aquilo que Unamuno relata é um pós-prólogo – Toda esta ligação entre sonho e realidade – Vida e ficção é arquitectada por Unamuno de forma a que Névoa deiche muitas portas em aberto a futuras interpretações: Névoa é uma novela mas também um pós-prólogo onde ficção e realidade se mistura; Unamuno como narrador e escritor é também personagem, personagem confidente de Vítor que aconselha o suicido a Augusto. Não deixa de ser sublime que assim se atinja um efeito de ficção suprema, ficção levada ao limite, às bordas da realidade. O que é névoa? O que é desejo? O que é realidade e o que é sonho? O efeito meta-literário está bem patente na parte final em que Augusto discute com o seu criador qual é o seu papel na vida ou na novela. Vítor diz a Augusto que está a escrever um romance, e depois explica-se melhor, não é um romance nem uma novela, é uma “nivola”, face à curiosidade de Augusto em saber o que é uma “nivola”, Vítor explica que é um texto narrativo em que as personagens ganham vida, um texto em que abundam os diálogos e se discute tudo até tudo não ser nada. É este o efeito que “Névoa” dá, a construção de um texto dentro de outro texto, fenómeno que mais tarde inspiraria em muito autores como Borges ou Enrique-Vila Matas. Névoa lança os alicerces de uma ficção nova, uma ficção que se interroga enquanto tal, reinventando e revitalizando todo o papel da narrativa. Névoa é um exercício de uma habilidade/coerência/ perspicácia narrativa enorme e nele Unamuno leva o exercício ao limite do seu próprio estilo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ode que ferve

Ode que ferve
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Vários comboios se descarrilam dentro do meu peito, várzea
à noite com muitos pirilampos acesos:
fervem e cruzam-se todas as linhas -
uma pirâmide de olhares cruzados em fogo,
muitas rotundas, auto-estradas, viadutos,
linhas de metro, passa estridente um comboio a alta velocidade, bebo toda a cidade
e caio rotundo para o chão -
sinto o suor de todos, o doce espasmo de uma jovem etrusca e todo o
Sol a incendiar-te o sorriso: fizemos um pacto com ele, com a vida com o futuro (Comboio estranho que derrete) fizemos um pacto com tudo que fluí, as linhas entrelaçaram-se, sinto a tua pulsação no meu peito e beijo-te os pulsos, a ansiedade nervosa da cidade, o doce espasmo das borboletas e a
Contracção de cada recém-nascido que parte –
A febre recheia a cidade –
O peito cheio de praças e cidades inteiras por dentro, viadutos túneis, contigo em cada esquina, dentro de cada café – com o pôr-do-sol dentro dos pulsos – a injectar o sol líquido no peito, não há mais caminho para trás – tenho a tua sede de futuro, são seis e vinte da manhã e a cidade acorda e adormece ao mesmo tempo – Sinto o calor de todos os que aquecem – A cidade a subir-me pela espinha dorsal, como uma nuvem branca, quando te abraço faço um pacto com a Vida
A cidade chama por nós e faz nós dentro de nós, tudo flui a uma velocidade frenética e todos os poetas futuristas, italianos, russos, franceses, portugueses, espanhóis levantam a cortina pesada da noite à velocidade do dia – enchem os teus olhos de sol – bebo por eles toda a cidade, todos eles sabem quanto te amo (cidade industrial, ceroulas, pastor alemão, civilização assustada, seringas e preservativos no chão, cave com vários fundos húmidos) a boca cheia de vidros – lambo-te o peito, os pulsos, os dentes, a língua (uma abelha na auto-estrada) o relógio de sol funciona à noite – se formos rápidos e seguirmos o dia – quando se patina sobre gelo fino a velocidade é a única salvação – e aqui cito todos os que não disseram a frase porque a sabem e sabem que o tempo corre – Sinto todo o desconforto dos cães à toa antes de serem atropelados
estou nas mãos dos fabricantes de carros que atropelam os cães, nas mãos dos operários, nos muros contra os quais urinam, os operários com as suas mãos – com a linha da vida a arder até ao pulso, e no fim do dia as mesmas mãos com a linha da vida a arder, ou várias linhas que se cruzam, a segurar o pulso da mulher, a acordá-la, a segurar o pulso de todas as mulheres dos operários – preciso tanto de calor – sou a sede, a raiva, o medo, a Vontade líquida de estar dentro de ti, sou líquido e fervo por ti dentro, amo os teus olhos a tua boca os teus dentes os teus pulsos os teus medos as tuas inseguranças as tuas dúvidas, os teus tornozelos, a tua saliva, a tua língua, os teus olhos, a tua boca, os teus dentes, amo os teus braços, as tuas mãos, braços, pernas, pés, e atravesso a peito a tua nuca quente, o teu peito a nado, sou líquido – vejo pelos teus olhos – todos – beijo-te os tornozelos, se penso em escrever um poema sobre o fogo lembro-me da bombeira voluntária de vinte e um anos que morreu a combater os fogos deste Verão – continuamos a subir – são 6:35 da manhã e a cidade acorda por ti adentro
Vejo por trás de ti
Por trás de nós
Por dentro de nós,
a cidade acorda: o sol dos teus olhos a injectar-me no peito uma Vontade Nova – Em tudo Nova – Amo tudo o que ferve
a noite láctea que te atravessa o peito de Calor
Ode que ferve e liga pelo skype,
nado por ti adentro

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Dizia-se em Oachaca

Falava-se em Oachaca da tua sede e de uma menina que injectou petróleo no peito – Cristalizou da sua boca um líquido em fogo a formar-se no canto do lábio em ponto de açúcar, em ponto de sol e fuga e conjunto de limões e conjunto de homens que acedem os faróis: e descia da sua boca, pela casa, pelo chão, descendo as escadas, descendo o passeio, descendo a montanha, e pela montanha abaixo descia um sol líquido adocicado pela memória de todos – toda a memória do mundo a descer como um degelo solar pela montanha abaixo, todas as montanhas abaixo: À beira do mar pensava-se que o Vesúvio tinha irrompido; Todos saíam para os seus trabalhos e acendiam todos os faróis vermelhos que anunciam a nova era e os faroleiros entravam com uma mensagem nova, e as mulheres dos faroleiros iam aos faróis levarem um tuparware com sopa e trazer a roupa suja para levar, e sacavam a roupa suja e voltavam a levar a roupa suja. E faziam amor com eles no cimo de todos os faróis. E da montanha descia a memória em direcção ao mar, em ponto de sol, em ponto de fuga adocicada: Fizemos um pacto com a vida e com tudo quanto flui. A santa injectou petróleo e cristalizou da sua boca um fio que caía ardente – Todo o sol, carregado de sal e doçura a entrar na veia de cada heroinómano, de todos os amantes… Iam para perto dos faróis: às seis e trinta: por baixo da ponte da Arrábida um carro estacionado com dois amantes, os vidros embaciados. Depois ele abre o vidro e acende um cigarro de haxixe, o vento do mar entra-lhe no carro e bate fresco e quente ao mesmo tempo na cara dos dois. Ela baixa-se, encosta-se contra o peito dele. Sente-lhe o coração. Leve e seguro. Ele passa-lhe suavemente as mãos pelos cabelos. Beija-lhe as orelhas. A menina em directo para a CNN a injectar leite condensado no peito para afastar todas as nuvens que são rios inteiros em forma de vapor a flutuarem. Não era o quê? Dizia-se o quê? Em Oachaca. Falava-se de febre e limões, de beijos na boca que podem não acabar, de línguas entrelaçadas, de mãos dadas, de mergulhos no mar. Falava-se de Pedro Abellardo e Heloísa, de Mariana Alcoforado e de Alejandra Pizarnik.
Diziam as raparigas de cabelo curto, com a boca cheia de cerejas negras, que o sol podia um dia não vir. Os Atlantas esperam-no, fazem um pacto com ele, nós com a vida. Créme de la créme pela montanha abaixo. O padre de Hiroshima a apanhar o sol no fundo da montanha. O padre de Hiroshima a meter um bocado na boca. A beber o degelo: a apanhar as sombras do chão. A prendê-las com molas no estendal - E o padre de Hiroshima, como a mulher dos faroleiros e dos cortadores de carne,, a estender também a sombra dos cogumelos e dos prédios que derreteram para o chão e a sombra dos lírios e dos corvos e a pegar fogo com o seu esqueiro, às sombras das girafas, de todos os homens, animais, plantas e coisas: Adora, como todos a palavra “húmido”e o seu deus não é palavra e não se escreve por palavras e não sabe ler nem escrever. E ler nem escrever ajuda a encontrá-lo e ler e escrever não é nenhum deus: Dizia-se em Oachaca que o sol viria sempre e isso chegava aos homens que levavam os seus burros pela manhã nos caminhos de Oachaca. Passava um carro, um camião, os dois amantes por baixo da ponte Arrábida. Vão à bomba de gasolina comprar tabaco e cerveja em lata. Voltam para o carro abraçados. Dizia-se em Oachaca que o sol lhes ia entrar no peito: Dizia-se em Oachaca que nós somos todos os outros. Uma roleta russa de mel, para diabéticos enquanto descem flocos de neve para dentro das bocas negras. Um nevão que cobre África. Falava-se em Oachaca da minha vontade de te abraçar. Falava-se de um derrame, na artéria do coração, um derrame de petróleo doce e branco como o leite condensado ou o leite gordo das baleias. Um petróleo injectável: Falava-se disso em Oachaca enquanto todos os carros passavam para o trabalho. Falava-se com febre e as mãos a tremer, outras vezes com calma e com a ajuda do mezcal e tequilla. A sombra dos lírios violava a sombra dos homens. E a febre dos homens entrava nas mulheres: Dizia-se tudo isso em métrica sáfica e escrevia-se nas paredes dos cafés, das casas, das escolas e de todos os edifícios públicos, o quanto te Adoro. O Padre de Oachaca ouvia e secava as sombras e secava os rios e esvaziava os mares com o seu balde de plástico: um trabalho como o de Sisifo. De cada vez que se contém o choro os rios sobem mais um pouco. Falava-se em Oachaca da febre dos búzios, de pernas entrelaçadas, de braços entrelaçados, de estrelas entrelaçadas. As mulheres dos pasteleiros acordavam a meio da noite, com as suas meias de lã grossa, para virem abrir a porta à estrela que com todas as suas pontas batia em cada porta, e entrava dentro das casas: Uma estrela feita de solidariedade, que cresce quando as pessoas se abraçam, que é só febre, sensação e calor.

domingo, 30 de maio de 2010

Musgo que dá Vida

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Foram dar banho a Patrícia (1) , mesmo assim não descobriram o seu sexo, desinfectam os seus eczemas, cortaram-lhe o cabelo. Puseram-lhe uma fita azul no cabelo curto, limpara as crostas de sangue nas curvas das orelhas, subia um bocado pelas fontes, a febre de Ana, anestesiada pelos calmantes. Fumou um cigarro no jardim do Hospital Psiquiátrico. Ficou sentada muito tempo Num banco de mármore, à sombra de um carvalho.

Não-lhe descobriram o sexo outras enfermeiras: Mas era Patricia, um ser humano múltiplo: Todos nós – No fundo de um lago dois sósias jogavam pólo aquático - estavam sempre empatados. O jogo demorou muito tempo; Patrícia disse que tinha um lago na cabeça. Apagou o cigarro que o médico calcou.


A música é vertical, não se vê mas é no entanto táctil e a maior conquista da Ciência Física ao serviço da Alma: O jogo continuava empatado, dentro da cabeça humana; com duas toucas roxas, o mesmo homem de sexo indefinido jogava contra si próprio e viva num empate do Fundo.
Gostava de ser uma mulher:


Foram dar banho à Patrícia e não lhe descobriram o sexo. Cronos cortou os testículos ao seu pai Úrano e atirou os testículos ensanguentado para o meio do mar. O sangue do sexo no contacto com o sal do mar, gerou uma espuma, pelo sémen de um titã do céu fazer humor com a terra. E da espuma, julga-se que no Atlântico formou-se uma mulher que emergiu: Patrícia foi criada da espuma, Afrodite foi criada da espuma: E Cronos passou a passear pelo lago. E a Patrícia nunca falava do tempo. Um relógio de alta precisão japonês: Era do seu pai: Patrícia meteu-o entre as mamas – O relógio de prata fria entre as mamas: E Cronos mergulhou no lago e ficou a observar os dois jogadores que eram o mesmo, com duas toucas diferentes: às roxas.



*


Do casamento com Afrodite e Hermes, seu filho, nasceu uma criança de sexo indefinido: Patrícia – A hermafrodita que esquece. E nisto vejo a cidade de cima, vejo sempre a cidade de cima e sei onde eles estão: todos os filhos do sangue de Úrano: O planeta era hermafrodita e os pólos vão se unir: Noite e dia, sono e vigília, realidade e ficção, morte e vida, sonho e racionalidade, homem e mulher; espírito e carne (nunca pensei que o espírito fosse assim tão Carnal). A Fusão será única - a Patrícia vai mergulhar dentro do mesmo lago e sair para a rua para beber.

O planeta não pára: o ciclo não se fecha e renova e isso prova-o o coração de Patrícia a bater no peito: coordenado com o batimento cardíaco do seu coração, com o relógio frio entre as mamas

E Cronos passeia-se nas margens, com os pés no musgo, a fazer o tempo avançar dentro de Patrícia: Só há tempo se houver movimento de um ser. E A deslocação de um ser provoca da deslocação no espaço: na boca, na terra –Patrícia riu-se (como se deslocasse as margens de todos os rios sem dar conta: um riso contagiante. Caminhámos um bocado pelos jardins.

Aparece a Memória, a musa mais percersa, no seu bikini vermelho: E Cronos fixa excitado, completamente excitado, e para controlar a ansiedade e diminuir a tensão ordena aos deuses que hajam erupções em vulcões de todo o mundo: para acalmar a libido, os vulcões vêem-se em chamas por todos os cantos, todas as ilhas gregas, toda a Ásia Menor, toda a futura América Latina: Mas a memória é atraente e tudo quer. E Cronos não consegue controlar a erecção, e sai-lhe líquido pré—seminal como o de algumas flores gordurosas. E a Cronos só apetece fazer amor com tudo, fazem amor com tudo e consigo próprio, possuía a memória nas margens frescas do lago de Patrícia. E Cronos puxa a memória e dá-lhe um beijo no pescoço e depois no cabelo; a memória não se vira: Cronos não consegue acalmar a libido e quer possuir a memória de todos os homens, e comprar uma casa perto do lago de Patrícia, e ter os olhos magnéticos que tudo bebem, todas as memórias líquidas (as de todos) e mergulhar no fundo do lago.

E a memória que tudo Absorve compulsivamente chupa de baixo de água o sexo de Cronos, e os vulcões continuam-se a vir , aliviando-se a si e ao planeta: A memória chupa, e o sexo incha de prazer, o farol evangelista dá o sinal, os vulcões param, e Cronos vem-se dentro da boca da memória, e ela que tudo engole freneticamente, absorve algum do seu sémen e outro cospe na água esverdeado: os dois sósias espiam, E A mancha que bóia é o esquecimento e a anestesia. E os sósias vêm cá cima cima como dois peixes famintos e engolem o esperma esverdeado e adormecem abraçados no fundo do lago; Patrícia acende outro cigarro. A Memória volta a aparecer com o seu bikini, e repete-se o sexo oral subaquático, dos quais os dois homens que são o mesmo se anestesiam: e nos quais ficam viciados. E quando a Memória não vem ou vem mais tarde, os sósias ficam de ressaca, e tremem no fundo do lago.

e fazem amor por séculos na água quente do lago de Patrícia, enquanto os dois sósias espreitam no fundo: E o tempo, (toda a motivação só por o ser, é já movimento e acção)

Patrícia faz amor com a música horizontal (de onde vêm o prazer, a vida, a morte)
Patrícia faz amor com a vida horizontal e vem-se sozinha, no seu sexo indefinido, um orgasmo para cima do bolo (Tinha sido fundada por um Ministério, uma Associação que tivesse subsídios para se juntarem e comerem o bolo da Ana, com o leite branco e espesso de um orgasmo de dois sexos. E essa associação reunia-se num palácio com vista para o lago, grandes varandas, com cinzeiros grandes e sumos de laranjas e rissóis: E viam a Ana a afazer amor com tudo o que é horizontal, a Vida, a Música.

Conheci a Ana, levavalhe leite. Tentei que ela fosse comigo ao cabeleireiro, ao médico. Os seus eczemas preocupavam-me. Depois do leite bebia cerveja e vinho com outro sem abrigo ao lado Pingo Doce. Levei-a comigo mais tarde para o Hospital Psiquiátrico: Ela falou-me de um lago. Onde dois sósias jogavam Pólo-Aquático e estavam empatados e *as vezes lutavam e outras vezes faziam sexo dentro das balizasou no meio do campo.. Falou-me que o erro é a única forma de salvação e contou-me a origem do nome sexo e do nome sector. Os seus olhos pareciam de um magnetismo de âmbar, luminoso, um pôr do sol dentro da cabeça a iluminar de dourado o lago: Os seus olhos eram de cor nenhuma: mas extremamente Vitais. Do outro lado do lago outros olhos magnéticos, a chuparem a vida toda para si. Como se pelos olhos lhes entrasse todo o Universo.

Zeus criuou um único ser e colocou-o no planeta, um ser de sexo indefinido; Zeus achou-o feio e tosco e a precisar de companhia. Mandou que o fossem buscar e dividiu em dois; sectarizando, partindo, tornando um ser em dois. O homem ees mulher, cabia-lhes agora a eles serem deuses e eliminar essa secção e criarem eles próprios como deuses. E aproximarem-se na forma e em tudo numa fusão contínua. Patrícia levantou-se a sombra começava a desaparecer e fomos para outro banco, ofereci-lhe um cigarro à e ela continuou.: Riu-se “ A sombra dos lírios masturba a sombra dos homens”

Vivemos um século febril – Disse-me –Já leu Julian Artl? – Respondi que não – O nosso século precisa que a tecnologia se alie ao mais profundo da alma – A tecnologia ser só alma, ( o seu maior instrumento): Preciso de um abraço – Disse-me. Abraçámo-nos durante muito tempo. Eram por volta das seis da tarde.

Precisamos de mergulhar no mais fundo do humano: os seus olhos magnéticos, reflectiam o sol: Precisamos ser todos os outros, aprender com todos, mergulhar dentro dlees, nos seus olhos nas suas nucas, nadar dentro de cada ser humano, Lê-lo e ser também ele: Como se fosse morfina, o sémen de Cronos ( o que tudo faz mover) ou outra poderosa anestesia – o contrário de sentir que a memória cuspia, da cor na morfina para a água quente que e, que logo atraía o mesmo homem, que em dois corpos diferentes, nadava à superfície para com as suas duas para anestesia: Como o sémen liberto do tempo, fosse metadona: O esquecimento

Ficamos a falar durante mais meia hora e tive de regressar ao consultório.


(1) A mesma referida em "Delírio Húngaro"

Nuno Brito

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cerejas do fundo*

Uma rapariga comia cerejas, descalça na praia, e as ondas vinham e levavam os caroços. E no fundo do mar os caroços davam cerejeiras. E no cimo, com os pés molhados e salgados a rapariga comia cerejas numa praia perto de Nagasaky. Um cogumelo de fogo e fumo formou-se no ar e o mar contraiu-se com as cerejeiras no fundo. E a sombra da rapariga continuou a comer a sombra das cerejas: E as sombras dos pára-quedistas descem, fluorescentes no ritmo sobre a tarde roxa: e a sombra roxa recheia de susto os pescadores, todos eles com ametistas nos bolsos.

Mais tarde Mina cantaria Nagasaky Blues.


Nuno Brito

Os que levam

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De vez em quando uma língua de mármore entra no Aleixo, por entre as nuvens, e leva uma criança: Se a língua quiser leva duas crianças, se lhe der vontade a língua tira três ou quatro grupos de crianças aos seus pais e desaparece. Os pais vão à Segurança Social e a língua não devolve as crianças: E os pais pedem à língua uma segunda oportunidade; que vão tratar da vida, ter rendimentos: A língua recolhe-se para dentro do edifício burocrata e volta sem trazer nada.



Nuno Brito

As Paliças

Estava sentado numa taberna perto dos Clérigos, quando me chamou a atenção a conversa que dois homens tinham à porta enquanto fumavam: ÓH Paliça! – A Paliça que vi pelo vidro cheio de publicidade à Sumol, fez-lhes um sinal obsceno e continuou.

Um deles disse: Esta, se lhe pagarmos uma bola de Berlim ela chupa-nos durante uma hora. A desdentada anda cheia de fome. Parece uma cadela: – Os outros riram-se. A paliça continuou com o cabelo curto e branco, cheia de eczemas na cara.


Mais tarde ao entrar em casa, vi descer pela rua a Paliça, meti conversa com ela; vinha com uma saca com um frasco de metadona e alguns pêssegoa, explicou-me que o seu filho lhe pediu para deixar em casa o frasco, e comia um pão ressesso, que os poucos e frágeis dentes da Paliça iam trincando como um ratinho, mastigando muito tempo para os amolecer com saliva.

A Paliça pediu-me um euro – Eu dei um euro à Paliça e ela deu-me um beijo com a cara cheia de batom de uma loja dos trezentos. Convidou-me a ir a casa dela. Tinha muito gosto que conhecesse asua casa. Falou-me do filho de uma forma vaga. Que estava na prisão a cumprir sete anos, e amanhã ia a Custóisas e lhe ia levar Pêssegos e cerejas e uma caixa de bombons, pediu-me mais um euro, enquanto subíamos. Percebi que a metadona não era para o filho. A Paliça tinha-se habituado a comprar no cimo da rua a um vizinho. Porque o filho estava a ser perseguido por dívidas e não podia ir ao CAT e um dos vizinhos, antigo frequentador do CAT que voltava a recair na heroína, ia todos os dias ao centro para a comprar, e fazia o tráfico dos frascos. A Paliça ia comprar para o filho quando ele estava ainda em casa. Depois ele foi apanhado a vender e foi para Custóias; e a Paliça ia comprar metadona para si. Traficava o seu corpo, e isto não era violento nem atroz, era simplesmente natural; E pensei que nenhum aforismo de Cioran se podia adaptar à vida da Paliça e que nenhum outro aforismo produzido pela humanidade se podia jamais adaptar a uma situação vivida pelo homem. Comemos pêssegos na cozinha. A Paliça parecia-me muito com uma figura que tinha visto no museu da cera em Fátima, quando era criança: uma figura anónima, que num conjunto de outras estátuas tapavam com os seus braços de cera, a luz que irradiava do sol e da aparição mariana. Cera incrédula que se convertia ao milagre. A Paliça disse para eu descontrair no sofá. Imaginei que não queria que a Paliça me chupasse, isso seria sexo oral feito entre duas estátuas de cera, isso assustou-me: Escultura que soube anos mais tarde, tinha sido feita por um artista plástico dinamarquês. Falei-lhe que era escritor e a Paliça, tal como Julian Artl e DJ Kant aconselhou-me a não escrever. Fui comprar fruta e bombons para a Paliça levar ao filho e fui para São Bento apanhar um comboio aleatório. A viagem que comprei acabava perto. Regressei várias vezes ao Porto e visitava com frequência a casa da Paliça, víamos no sofá os programas da manhã, os concursos da tarde, as telenovelas da noite, e outra vez os concursos que ficavam entre as telenovelas e os concursos. A Paliça tinha o comando.

Nuno Brito

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Kant

Vieram de longe para ver Santa Teresa de Ávila a espumar petróleo, óleo sobre tela, de grandes dimensões pintado pelo DJ Kant, o mesmo que Julian Artl considerava o único crítico literário digno do nosso século febril: O mesmo que era incapaz de ler um livro porque os seus dedos lhe tremiam e porque estava sempre com um cigarro na mão (não podia folhear). Contavam-lhe histórias. Da exposição fazia parte também um conjunto de retábulos que Kant pintou para a sua primeira exposição nos arredores de Berlim: “Uma Sagrada Família com o reactor de Chernobyl ao fundo”, ao lado de Uma imagem de Cristo e São João Baptista na Segurança Social”, E uma de “Soror Inês de La Cruz a ser possuída analmente por um cavalo”. O último painel era uma Última Ceia, num jardim, os apóstolos sentados por baixo dos guarda-sóis comiam lírios, que estavam nos pratos e nas travessas: Pedro comia um lírio, Simão comia um lírio, Judas e Paulo também comiam lírios e Jesus descascava a parte branca enquanto trincava a parte laranja, de uma forma que alguns críticos acharam obscena e outros críticos acharam extremamente sensual. A exposição foi bem acolhida pelas revistas de crítica de Arte e ao contrário do que se esperava, passou praticamente desatenta às críticas das Associações católicas. O prior de uma Igreja de Roma comprou os retábulos, para possuir pinturas sagradas de novos valores emergentes da pintura contemporânea.

Artl era um dos convidados para a exposição, escreveu-me depois de Berlim, falando de cada um dos quadros e da admiração que nutria por Kant. Disse-me que Kant o aconselhou a nunca mais escrever, enquanto não conhecesse a fundo a natureza humana. Artl disse-me que ia seguir o conselho: Perguntou-me se seria possível enviar-me por mail o catálogo com as imagens de Kant, e se havia alguma hipótese das imagens serem scanizadas em folha de gelatina. Eu disse-lhe que o cão já estava morto, ou quase morto, porque há muito tempo que não se levantava do tapete, tinha apenas espasmos de vez em quando, nos primeiros dias: Agora nem isso:

Está morto com estômago recheado com os seus últimos contos.


Nuno Brito

Três contos sobre Lírios

“A Literatura é um pacto com o absurdo…”Rober Diaz


A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.

Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.

Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.

Nuno Brito

Linha

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Foi um sósia negro que atendeu do outro lado da linha: Já tinha ouvido falar dos sósias extra-continentais que viviam com feições e traços expressivos iguais a homens de outros continentes, apenas com as naturais distinções de raça (palavra obscura). No Dicionário Britânico Universal havia uma entrada para este tipo de sósias, que tem no fim uma extensa bibliografia e lista de célebres sósias inter-continentais.
Do outro lado da linha ouviu a sua própria voz, a penas com um sotaque mais carregado do centro de África, um sósia dos PALOP, que rapidamente identificou consigo próprio. Era a linha de apoio ao suicídio, e a pastilha cor de rosa encontrava-se em frente na mesa, ao lado cinzeiro cheio e de um copo de whisky.

Falou ao sósia, da sua vontade de cometer um nascimento oposto, e contou-lhe a sua história de desempregado. De antigo funcionário nos serviços de apoio ao suicídio da Direcção Geral de Saúde – Agora falava com um colega seu, que lhe parecia inexperiente e que era ele próprio numa versão negra.

Conteve as lágrimas ao falar do último relacionamento; da queda no álcool, do tempo na faculdade de Psicologia, dos conturbados anos do Mestrado. O negro não dizia nada: Sendo ele próprio que falava do outro lado da linha, sabia já a história completa e não deu nenhuma espécie de conselho, não aconselhou a psicoterapia, não passou a chamada a outro especialista, não perguntou antecedentes, o médico que o seguia, não mostrou interesse em saber quais os fármacos psiquiátricos que estava a tomar.


O silêncio manteve-se durante muito tempo entre o mesmo homem de um lado e do outro da linha, que se tornava enferrujada, comunicação tornava-se impossível e muito negra; Porque eram a mesma pessoa, inteiradas do mesmo caso clínico, o silêncio prolongou-se – Pegou no copo de whisky e na pastilha cor de rosa, acendeu outro cigarro e ouviu o isqueiro acender-se do outro lado da linha.


Nuno Brito

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mascarada

Mascarada
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Pensou ir mascarada à festa - Descobriu no espelho da sala que já estava mascarada; não percebeu de quê. Descalçou-se como as outras raparigas de cabelo curto para ir à festa. A cara fugia-lhe para um estranho ângulo, não era bem cara; Observou-se em campo/ contra campo – Não a ela – Mas às outras. Não era cara o que tinha; Descalçou-se e escreveu três poemas em métrica sáfica: “A Expiação de Pizarnik”, “Pathos de Mariana Alcoforado” e “A Tentação de Berlim”. Fez um bolo com muito chantilly para levar à festa. Parecia que voltava a ter cara.

Nessa Noite sonhou que caminhava pelo gelo de um dos pólos, e estava cheia de febre, e era muito grande, anormalmente grande, e os seus pés quentes faziam derreter a neve, e esse degelo criava pequenas lagoas e rios que desciam pela Escandinávia e depois pela Europa toda, e conseguia ver, pelo seu tamanho anormal a Europa toda, os fabricantes de cerveja em Munique, os semeadores de trigo da Sicília, os apostadores da bolsa de Amesterdão: alguns atirando-se de janelas por perderem tudo num mesmo dia. Os pescadores que pescavam no Báltico, os transportadores de sal, os camionistas a entrarem em França e a saírem de França, os leiteiros de todo o continente a levarem as bilhas a casa das pessoas, os guardas de todos os faróis da Europa a ouvirem rádios mal sintonizados, os pastores a percorreram com os seus rebanhos vários trilhos, os paquistaneses a venderem guarda-chuvas e flores em todas as metrópoles da Europa.
E a neve estava um pouco vermelha, como se depois da neve tivessem chovido morangos, e ela calcava a neve e os morangos que no contacto com o seu corpo quente faziam rios vermelhos que desciam das montanhas. Olhava o mar, agora no seu tamanho normal e apareceu uma ninfa com a boca negra de petróleo, vinha do golfo do México onde no seu fundo Neptuno ficava imobilizado, com os músculos presos e cristalizados pelo petróleo gordo. E lembrou-se que o petróleo era antes de o ser, sangue de animais vivos como os dinossauros e de árvores vivas fossilizadas, coisas com vida, que agora davam vida, pensou na revitalização do planeta, e na morte como a grande ficção. A ninfa com a sua língua negra abraçou-a, e deram um linguado que demorou muito tempo, a sua língua estava também negra e o petróleo colou as duas línguas que ficaram presas e entrelaçadas: Mas isso não provocava pânico, era sangue de animais vivos, agora fossilizado, aquilo que permitia agora os carros dos bombeiros apagarem os fogos e fazer os aviões voarem: os dinossauros permitiram o voo aos homens. Isto fez rir as duas. Entraram no mar pensando-se uma única coisa. Escorria-lhes do sexo um leite adocicado enquanto o linguado continuava, e as línguas continuavam entrelaçadas e presas, tal como os braços, os da ninfa gordurosos de petróleo colavam-se aos seus como resina e eram uma só coisa, sentadas de joelhos em frente ao mar, à espera que a maré subisse.


Nuno Brito

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Coisas que servem para ver mais longe

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1.

Sonhei que Santo Agostinho emergia de uma piscina de etanol, a mesma do nosso colégio. Tinha uma touca às riscas, a mesma que usávamos nas competições de natação. O Santo olhava para mim com uns binóculos antigos, notou a minha erecção, que fazia nos calções justos um chumaço torto. A minha boca sabia ainda lixívia doce. O Bispo de Hipona voltou a mergulhar com os binóculos como se procurasse no fundo da piscina uma relíquia da cruz de Cristo.


2.

Vinha da piscina em direcção aos balneários, todos os outros estavam a jogar futebol, no balneário estava o monge, sentado e nu, apenas com uma toalha azul-marinho pelas pernas, que lhe escondia o sexo, a toalha tinha uma ânfora dourada.


3.

Disse que eu era um bom rapaz e convidou-me a sentar ao lado dele, enquanto se ia esfregando, senti aumentar o estampado da toalha, uma ânfora em fio dourado erguia-se com a erecção do monge, parecia triste. Senti necessidade de lhe dizer qualquer coisa, que cantava bem por exemplo, que tinha sido com ele que tinha aprendido a decorar e solfejar os salmos mais belos dos livros antigos. Ele sabia a minha paixão por hagiografias e sobretudo do meu interesse pela obra de Santo Agostinho, e muitas vezes pedia ao monge bibliotecário para me deixar ficar mais tempo com os volumes da “A Cidade de Deus” que eu lia muito devagar, tirando algumas citações do Santo para o meu caderno porque não os podia sublinhar.

4.

A toalha estava quente, o monge guiava a minha mão para cima e para baixo, tive vergonha de olhar para ele. Tirou a toalha e vi o seu sexo erecto, guiou-me a mão até ao sexo e voltou-me a falar dos binóculos, que tinham sido do seu avô, e falava-me de “A Cidade de Deus”. Corrigiu-me a postura da mão, depois disse – um bocado mais depressa – Os binóculos são bons – Eu disse que aquilo era porco e podia aparecer alguém. Ele disse que não e voltou a falar dos binóculos. Eu adorava ter aquele livro, por isso, quando me pôs a mão na cabeça e ma baixou devagarinho, não me atrevi a negar.
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5.

Pensei nos binóculos e na edição nova da “A Cidade de Deus”. Pediu só que eu tocasse na toalha, na parte da ânfora, a que estava mais levantada, eu toquei, e ele pôs a mão por cima da minha, e disse – Faz assim devagar – Eu disse que aquilo era porco e não se devia fazer – Ele não respondeu e começou a contar a história da nossa Instituição, dizia que se lembrava de cor da cara de todos os meninos abandonados que passaram nesta casa, meninos que cresceram e têm agora um futuro pela frente podíamos ter nesta Santa Casa um abrigo, uma esperança e um futuro. Falou-me de um menino que era agora deputado e de um outro professor Universitário em Inglaterra. Enquanto eu continuava no ritmo regular, ajudado pela sua mão, que corrigia por vezes os meus movimentos, fazendo acelerar ou abrandar a intensidade do gesto contou-me que foi ele que pressionou o director a montar a piscina e o pequeno ginásio, porque é bom para nós e para os monges fazer-mos desporto, e o campo de terra batida só dava para os jogos de atletismo, a ginástica e o futebol quando não chovia.

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6.

- Meti a boca e chupei, tentando pensar nas imagens de um livro de milagres ilustrado que tinha no meu quarto. Segurou-me na cabeça, e pediu que continuasse, esquecendo-se de falar. O sexo ficava cada vez mais duro, e ele pediu para eu continuar até que grunhiu e a minha boca encheu-se de um jacto quente. Ele disse que depois passava no meu quarto e foi tomar banho.
Fui lavar a boca, o esperma quente estava-me nas covas dos dentes, no fundo e debaixo da língua, algum nas amígdalas, e durante vários dias parecia que tudo o que comia no refeitório me sabia a lixívia adocicada.
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O monge boiava numa piscina de etanol, Depois voltou à superfície com uma touca igual às riscas, e Santo Agostinho ficou lá em baixo durante muito tempo. Depois o monge grunhiu de prazer, o mesmo som que tinha feito comigo, imaginei a mancha de esperma a boiar no fundo da piscina. Os espermatozóides em dança eléctrica, nadando uns bruços imperfeitos: procurando um útero, que lhes garantisse a sobrevivência, inexistente na piscina do Etanol.

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No sonho tive medo que pensassem que a mancha branca na piscina fosse minha, de fazer coisas porcas na piscina e sai a correr para o pátio. Entrei na igreja e rezei em frente ao altar de Santa Helena. No etanol a mancha, por um efeito químico, tornava-se fluorescente, como se fosse uma mensagem que o colégio devia acolher.
À noite voltei à piscina para me certificar se a mancha ainda lá estava, procurando o intervalo em que o funcionário do ginásio estava a fumar um cigarro.
Da água escura voltou a emergir Santo Agostinho com a sua touca às riscas, trazia na mão um pedaço de madeira e um espinho. Saiu da água e deu-me as relíquias para a mão, ainda com os binóculos ao peito. A minha boca ainda sabia a lixívia doce, e o arroz na cantina sabia a lixívia doce, e os rissóis pareciam ser de lixívia doce. Embrulhei as relíquias na minha toalha.

sábado, 15 de maio de 2010

Créme de la créme

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O mar é aquela coisa bela,
Azul e profunda onde os homens se afogam

Anónimo Português século XXI


Não sou o tempo que demoram as ametistas a chegar ao fundo do mar,
Sou só uma pessoa que quer mergulhar em todos os olhos e não sair, uma ametista
Ansiosa que as pessoas se abracem; e ser também esse abraço para que as estrelas se venham, e que os olhos tristes da minha amiga nevem
Ando pelas ruas à espera que dois olhos me violem o metaplasma, Acendam a espinha;
Adoro lamber lágrimas e caras inteiras, as pequenas estrias e nódoas negras que Bernini esculpiu nos tornozelos da estátua A Verdade, são iguais às dos teus tornozelos, estrias, veias finas e azuladas, nódoas negras, hematonas, nas pernas / na pedra / bem torneados de um veio de mármore um pouco mais azulado
O amor é como carne
sabe a mar e a limão, a parte de trás das orelhas – disseste
Que as estrelas-do-mar são virtualmente eternas, porque são só pontas e sensação,
e quando uma ponta é cortada dá origem a uma estrela nova, e isso pode demorar séculos, inquisições, guerras mundiais, guerras nucleares, holocaustos africanos, eclipses totais do sol,
As estrelas-do-mar são virtualmente eternas
se me pedem para escrever um texto de cariz social, lembro-me da imagem do Rodas, a ingerir os pacotes de coca e heroína, poucos segundos antes da polícia aparecer no início da rua e de alguém lhe assobiar, vinte minutos depois de ser revistado a ir à banca beber água quente e azeite, e meter os dedos dentro da boca para vomitar - Tudo antes que os sacos rebentem: Na esquadra, diz-me o Rodas, levam alguns que não têm produto nos bolsos, ou enfiado nas meias para o hospital,
E no hospital metem-nos o caga-rápido, e descobrem as embalagens – Já esteve preso seis meses, mas as coisas correm bem, mesmo com duas noites seguidas que passou na esquadra, e depois olha-me febril, a dizer que tem de sair da cidade, no dia anterior à visita do Papa, noite em que não é seguro vender, porque anda muita polícia na rua, e pensa sair, ir para o sul onde tem família. E lembro-me do discurso sobre a dignidade do homem de Giovanni Pico della Mirandola, e da responsabilidade total do homem de Jean Paul Sartre, e isso dá-me vontade de rir, e de ser abraçado pelo Sol, e dar Vida, nos braços, de um beco escuro ao lado da rua Mouzinho, dois injectam o sol líquido nos braços e tombam para a frente, e o sol aparece mais acima carregado de um esperma, gerado em chamas pela vitalidade e loucura dos homens: que lhe permite brilhar, num cio de estrela dependente de emoções
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atravesso a nado os teus braços, as tuas pernas, a tua nuca, a parte de trás das orelhas sujas de café, de uma lambidela suja: por ti, (e vemos de todos os olhos) – O que foi visto e se há-de ver: abraço-te a mim, num corpo único que há- de rebentar recheado de sol, sinto o teu corpo pelas minhas mãos, pelos teus olhos vejo entrarem todos os mares, e acenderem¬-te de desejo e resignação, como se uma orquestra que tocasse Mahler fosse enviada para Neptuno, os músicos unidos por fios dourados, coisas que ligam – pessoas a pessoas – tudo se acende à minha volta, assobiam do fundo da rua, o Rodas corre. A travesti canta para nós. A orquestra faz o planeta vir-se, e uma chuva de néon cai sobre a terra, da Eurásia à Austrália. Atiramo-nos para uma piscina, e no fundo, descobrimos uma galeria subaquática, que se bifurcava por baixo do solo: saíamos na região do medo, como se saíssemos na estação de Montparnasse


Mostrou-me um livro – Eu escrevi um livro sobre a droga – Corrigiu: Eu ditei para um escritor a minha experiência com a droga, Rodas! Rodas! – O Rodas chegou do quarto – Sabes onde está o livro sobre a droga que ajudei o escritor a escrever? – Está aí naquela gaveta – O Rodas foi à gaveta e tirou de lá um livro com a capa de um cor-de-laranja muito carregado e mostrou-me:
O título era “Como evitar a droga?” – A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem e acendeu um cigarro.

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Continuámos pelas galerias que a piscina nos oferecia, encontramos Cronos de calções, dois semideuses sem os dentes da frente nadavam em sentido contrário como Neptunos. Mais à frente descia o nível das águas, e passámos a caminhar no lodo, apareceu um guia da América central com um microfone preso ao pescoço, guiou-nos pelo Inferno com a sua voz de sopinha de massas – Em que círculo estamos? – Perguntei ao meu amigo, que era uma puma, e outras vezes uma mulher – Não estamos em nenhum círculo – Estamos por baixo da casa onde mora o Rodas: E mais à frente ali os ratos – Não são ratos, são homens que desceram na condição social – Disse o guia – A pirâmide, está a ver, aqui vemos pirâmides, pensamos em triângulos, vemo-los por todos os lados, ainda não somos capazes de assumir a natureza humana, sem hierarquias verticais – Mas o planeta é uma linha horizontal da qual o homem se aproxima na sua subida. Assim, não são ratos, são homens: Vivem como ratos mas são homens. Pedi um cigarro ao meu guia e ele falou-me de um homem sábio.

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Qualquer rato tem a sua mãe, e as mães dos ratos vão visitá-los à prisão e as namoradas dos ratos vão à prisão e fazem sexo com os ratos, e levam os filhos mais tarde para que os ratos vejam os seus filhos – E os ratos olham-se ao espelho – ansiosos por descobrir os mais Fundos Limites humanos e não vêm o espelho, vêm só um homem que são eles, obrigados a ter dignidade.

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O homem sábio era David Foster Wallace, disse-me o guia, que como qualquer homem é sábio: E isto deu-me vontade de rir, e não sei porquê imaginei os músicos ainda ligados por fios dourados em Neptuno a tocarem agora Bethoven – e lembrei-me da palavra “húmido” como adoro a palavra “húmido” como adoro tudo o que está húmido no corpo humano – como amo – tal como Milton – Tudo quanto fluí – e senti-me escorregar pelas galerias sem rumo e sem escolha do caminho entrando por umas saindo por outras auxiliado pela música:
A forma mais evoluída de literatura – David Foster Wallace escreveu em “raparigas de cabelos estranhos” uma pequena história sobre um grupo de amigos que vão assistir a um concerto de jazz, na segunda parte do espectáculo, dois deles saem (um deles é a personagem principal do conto) E o outro rapaz que tinha tomado LSD antes do concerto diz à personagem principal: De onde advém a tua felicidade natural? --- Se me explicares de onde advêm a tua felicidade natural deixo-te esporrar para cima de mim e da minha namorada – No conto a personagem principal sente-se embaraçada com a pergunta mas começa a responder, são cinco páginas completas a resposta dele, uma resposta insegura que não convence o outro que lhe diz – Falas-te muito, mas não me disseste de onde provêm a tua felicidade natural. A personagem principal sente-se derrotado na capacidade de diálogo, mas tenta uma última tentativa: Se eu te der 1000 dólares deixas-me ir com a tua namorada? – O amigo aceita. O conto acaba pouco depois, ficando em aberto essa hipótese que o fim da narrativa não permite saber se se concretiza.




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As estrelas do mar são virtualmente eternas
As medusas são virtualmente eternas
(Porque não têm sistema central, não pensam, sobretudo não reflectem, são só nervos e sensação, ponta e electricidade)

A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Ensaio sobre a cara

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Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)

Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.

Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.

Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.


Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Rosa Maria Martelo: A Porta de Duchamp




A Porta de Duchamp – Rosa Maria Martelo: Averno, Lisboa 2009




“Quando vivia em Paris, no pequeno apartamento da rua Larrey, nº 11, Duchamp fez instalar dentro de casa uma porta que não podia estar aberta nem fechada porque estava sempre aberta e fechada ao mesmo tempo” Assim começa “A Porta de Duchamp” de Rosa Maria Martelo, narrativa fragmentada de 17 partes, todas elas com um ponto em comum: as portas como ligação / o que abre / o que fecha - O que mesmo que esteja fechado está aberto. A reflexividade é marcadamente forte neste texto, injectado de uma emotividade sensorial muito acesa e de uma profunda e muito viva perspicácia. Logo no início, as citações iniciais revelam um pouco da narrativa:

“Ouvi bater à porta.
Não há porta. Porque haviam de bater à porta que não há?”
Mário Cesariny

“Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta, e me possa abrir com razão a inteligência do mundo? “
Álvaro de Campos

Duchamp, Fernando Pessoa, Cesariny abriram muitas portas, Rosa Maria Martelo também com este livro, sobretudo muitas perspectivas. Trata-se de um livro múltiplo, coerente e vital, sobretudo de grandes revitalizações.
A reflexão sobre a passagem / o abrir caminhos, é muito atenta e inteligente “Uma porta que ele abria quando a fechava (fechada mesmo aberta como, alguém disse acontecer com os livros”: A frase incluí reflexão sobre o fenómeno literário que continua no texto seguinte: “Há quem fale de livros entrados na carne, como agulhas, de venenos incolores descompassando veias”
O elemento – entrada / saída é revisitado em outras partes do livro – Entrar com força, sair com força. A viagem prossegue com outras pequenas histórias interligadas por este factor, A fotografia está presente. A fotografia usada como registo frágil, suporte perene, pode ser uma das múltiplas aberturas / perspectivas e interpretações do texto “Lama”: “O que faz um fotógrafo de nuvens e de estrelas, neste dia de chuva, de temporal desfeito, quase deitado no chão, fotografias espalhadas no meio da lama”. Em “Infância”, há uma Imagem fortíssima de grande carga sensorial mantendo um registo único: “subtrair à passagem das ondas e do tempo pedacinhos de nada, menos que conchas (búzios partidos, por exemplo de que ficara o centro em espiral). Há uma revitalização da infância: portas que se abrem e fecham na memória e são invocadas (abertas / ou fechadas) nunca por completo: “nada pode ser verdadeiramente deste mundo”. Em “Filme” são invocado Gregory Peck, Ingrid Bergman e Hitchcock: “É então que Hitchcock abre porta atrás de porta, naquele movimento contínuo de certos filmes que aceleram a vida das plantas para as vermos nascer e abrir e abri mais, mas não morrer”. É de grande importância o uso da repetição e a pontuação em “folhas nascem e abrem) e abrem) e abrem)” O parêntesis é fechado, mas não aberto – A abertura está na frase. Outros recursos de grande vitalidade criativa são usados na criação de palavras por repetição e hífen, como “porta-porta”: As palavras abrem.

Muito mais poderia ter sido dito de um livro que é uma porta aberta e de um livro que é uma porta fechada (aberta e fechada ao mesmo tempo). É um livro que Abre muitas portas / perspectivas, onde se deve entrar e sair várias vezes.

David Foster Wallace


A Rapariga de Cabelos Estranhos – 1989
David Foster Wallace



Trata-se de um livro de contos. Dez no total. Neste ensaio, serão analisados dois dos mais representativos: “Pequenos animais sem expressão” e “A Rapariga de cabelos estranhos” Conto que dá o novo ao livro.

Pequenos animais sem expressão



“Pequenos animais sem expressão” trata de uma rapariga Julie, personagem principal, irmã de um rapaz autista. São filhos de um casal conturbado. O pai sai de casa e a mãe é uma pessoa visivelmente perturbada, incapaz de prover à educação dos filhos. A educação do rapaz, carente de cuidados especiais é feita por Julie, ainda muito nova. A mãe está ausente. Julie passa a infância sozinha com o rapaz, no mesmo quarto com o mesmo livro. Os amantes que se aproximam da mãe e frequentam a casa, rapidamente se intimidam com a presença do rapaz autista. Julie e o irmão são abandonados pela mãe, em estado de grande fragilidade. O rapaz é internado numa clínica com o auxílio de alguns familiares. Julie faz todo o tipo de trabalhos para sobreviver. Desde pequena que passava a vida a ler obras de carácter geral sobre diversas curiosidades, vida animal, geografia, ciência. Obras para a infância. Julie concorre a um concurso de televisão, baseado em perguntas de cultura geral. Como vence o primeiro, vai no seguinte e volta a vencer. Vence sempre e por isso torna-se popular no mundo da televisão americana. Acerta em todas as perguntas. Entra aqui a capacidade fortemente imagética de David Foster Wallace, cujos cenários de muitos dos seus contos e novelas é o mundo dos bastidores da televisão, sobretudo das grandes produções da televisão americana. Noutros contos deste livro é abordada a questão dos talk shows. Foster Wallace aborda o fenómeno televisivo como uma realidade paralela, construída, mas recheada de caminhos escuros, entre eles a exposição da vida privada, levada ao limite. O oposto entre estes dois mundos é muito bem explorado neste conto. Uma das técnicas de som, Faye, do programa de televisão apaixona-se por Julie e as duas começam a namorar. A técnica de som procura sempre desculpas para o amor lésbico, Julie não procura desculpas. O apresentador do concurso, Alex, figura pública da televisão americana, frequenta um psicanalista, está inconscientemente apaixonado por Julie. Um dos métodos de terapia é a livre associação de palavras. E é neste exercício, que David Foster Wallace se esvai de forma absoluta, o conto possuí muitas livres associações de palavras, sobretudo por parte do apresentador, que vão desde o aforismo a frases de uma intensíssima carga erótica e sensorial. O irmão de Julie vai também um dia ao concurso e acerta em todas as perguntas sobre animais. Julie e o irmão tornam-se populares estrelas de televisão, com a perenidade que isso envolve. Mas as suas relações humanas privadas são exploradas por Foster Wallace até ao cúmulo da emoção. As descrições dos sonhos de Alex são relatos absolutamente geniais.

A rapariga de cabelos estranhos

Este conto é um relato na primeira pessoa de um advogado de uma grande empresa e do seu grupo de amigos punk. Todos vão a um concerto de música clássica, e é durante o concerto que se passa toda a acção deste relato. David Foster Wallace retrata uma sociedade de extrema, colocando-se na pessoa (voz, narrador principal) dos estereótipos que mais detesta. A personagem principal considera-se a si própria bonita (orelhas bonitos, cabelo perfeito). Diz para si próprio ser um homem de sucesso com muitos bons amigos. Durante o concerto conhece outros dois rapazes punk que os amigos lhe apresentam. Todos tomam LSD, menos ele. Antes do intervalo sai um pouco para o hall da sala de espectáculos com outro dos seus novos amigos e este pergunta-lhe como é que ele consegue ser tão feliz. E Diz – Se me explicares de onde provém a tua felicidade natural deixo-te ejacular para cima de mim e da minha namorada. Ele foge à pergunta, fala muito, três páginas mas fugindo à questão da facilidade. Acaba por dizer – Não respondi à tua pergunta, mas se te der 10.000 dólares deixas-me ir com a tua namorada. O relato é quase sobrenatural, completamente magnetizado pela presença no concerto de uma rapariga de cabelos muitos estranhos (a descrição não é feita) É apenas referido que são estranhos e isso contagia o grupo dos amigos a quem o LSD bateu forte.

David Foster Wallace consegue levar as descrições ao extremo, as descrições roçam a alucinação e em tudo provocam estados alterados. Falamos de alguém que percebe como ninguém o que é hiper realidade e a leva ao limite. Todos os contos parecem um riso interno e condensado, um Concentrar muito grande de emoções – Não só a partir das descrições extremamente sensoriais, mas também das elipses inteligentes.
Estamos perante alguém de um sensibilidade profunda.

Nuno Brito

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Café Del Greco

O mancebo entrou no Café Del Greco e pediu organino à marinheiro e o empregado disse: aqui não servimos música tocada por marinheiro, e também não servimos os marinheiros que tocam música, só servimos pasteis de chaves com muito fermento e cerveja também com muito fermento. O mancebo disse: Quero que as coisas com fermento se fodam!! Foi até à máquina de dar dinheiro, no fundo do café e meteu lá dinheiro e ficou sem o dinheiro porque não há máquinas de dar dinheiro. Pediu um prego no pão e o dono do Café del Greco deu-lhe um prego no pão. O mancebo saiu e foi ver o mar, a lua estava cheia e o mar tinha-se ido embora, depois o mar voltou e o mancebo chamou por um mexicano e o mexicano veio a fumar pela praia, com um passo muito lento. O mancebo e o mexicano sentaram-se na mesma duna e o mar sentou-se também numa duna. O mar pediu lumes ao mancebo e o mancebo disse: Eu não tenho lumes – E o mexicano disse: eu tenho lumes – E o mar começou a arder, e depois calçou umas botas de saltos altos e dançou como um tornado de fogo, e o mexicano disse que o mar era sexy e masturbou-se enquanto o mar dançava – É que dá-me tusa! Fodasse ver o mar dançar – Voltaram ao café del Greco e comeram dois pregos cada um e dois finos cada um.


Nuno Brito

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Quarta transcrição

Pensou ter acabado de assistir a Sunset Boulevard e a Mama Roma, guardando na memória, as imagens fortes que o ecrã LCD transmitia.
Notou, sem que o proprietário o avisasse que não estava na Casa del Cinema, mas numa loja rara e não era para um ecrã que olhava, mas para um aquário com motivos barrocos. Com pequeninas esculturas de Neptuno e ninfas que os peixes riscados contornavam para passar o tempo, escondendo-se atrás do corpo de uma seria de pedra, passando entre as pernas de Neptuno ou de um D. Quixote de pernas compridas e douradas que decorava o fundo aquário. Havia também algumas pontes, o proprietário era coleccionador de coisas que ligam. As pontes em miniatura não ligavam nada, porque estavam no findo do aquário, serviam para alguns pequenos peixes eléctricos descansaram nos tabuleiros inferiores. Réplicas em miniatura da ponte de São Francisco, pontes de Hamburgo, de Paris, muitas de Eiffel. Havia também um Ferrari pequenino já a ficar oxidado e a perder a cor vermelha. Havia também uma réplica do Palácio dos Reis de Granada – Os peixes eléctricos entravam no Alhambra ou no Palácio de Carlos V e descansavam de barriga para o ar nos claustros internos. Uma réplica também das torres gémeas, habitação de um tubarão martelo e pequeninas medusas japonesas que, ao dormirem no seu interior, iluminavam todas as janelas de uma carga eléctrica fortíssima – Havia uma miniatura de um dos reactores de Chernobyl e um castelo de Neuchvenstein marinho, protegido por dois sátiros de sílex. Era como se o proprietário quisesse reproduzir toda a História da Humanidade mas debaixo do mar. Pequenas estátuas de actores de cinema mudo ou de actrizes famosas da Brodway decoravam o fundo de um ou outro aquário. Num deles, a recriação com soldadinhos de plástico de uma batalha do Vietname, com os bonecos caídos ou levantados, as mulheres segurando os filhos contra o peito de plástico – Os muros caídos com pequenas anémonas em cima –O proprietário tinha um acordo com alguns artistas plásticos, encomendava-lhes em gesso ou plástico, (dependendo se era para aquário de água quente ou aquário de água fria)a recriação de uma batalha, de um acontecimento épico – Um episódio da guerra de Tróia, onde se via a fuga de Eneias decorava um outro. Noutro maior, a recriação mitificada de uma aparição mariana e da entrada das tropas aliadas em Berlim, com o seu muro de espelho a reflectir os peixes que por isso se aproximavam, temendo o inimigo.
. O proprietário grisalho notando o seu interesse no aquário e no cinema novo, introduziu-o no mundo subaquático:
A conversa foi longa em galerias da parte de trás da loja: Com grande variedade de espécies. Saiu e telefonou-me. Contou-me por alto a história dos filmes – Tudo depende das perspectivas – Disse-lhe. Está na altura de voltar ao Porto e acabar a sétima parte de “A Estrela” –Um de nós, deve concluir essa ponta que une todas as outras.




*


Foi então que o proprietário, sem cair na entropia de misturar várias histórias, lhe contou no fundo das galerias onde imperava um grande aquário decorado com a réplica de um castelo búlgaro de formas estranhas, algumas histórias sobre o suicídio no mundo animal – Não se conhece o suicídio na vida marinha – Disse, como se fosse um aviador marinho – Há três animais, que o fazem – O escorpião, os pequenos helicópteros, (insectos voadores), e os homens (que o praticam de forma mais variada e aleatória). O escorpião, em caso de fogo ou de perigo de morte espeta o ferrão na sua própria carcaça negra, com força – Aqui o proprietário estremeceu como um peixe sem espinha que se via em aflição, encurralado num buraco de uma rocha por um polvo de grandes tentáculos – Riu-se e fez uma expressão engraçada,, que manteve acesa, para que a história não se tornasse muito tétrica – Contou-me uma história da infância, quando passava os verões no campo, em casa dos avós – Com os primos costumava caçar escorpiões – Depois faziam um círculo de gasolina em volta do escorpião, muito rápido acendiam o círculo com um fósforo e desenhava-se no chão um círculo de fogo que rodeava o escorpião, que dançava assustado, até à decisão de espetar o ferrão. Os primos olhavam com os olhos bem abertos – Tinham acabado de levar ao suicídio um animal perigoso, cujo veneno pode matar os outros ou a si próprio.

Sobre o segundo animal suicida, foi mais breve – os helicópteros: Contou-me como eles, em situação de perigo, chocavam uns contra os outros praticando uma espécie de suicídio duplo em situações de perigo, como grandes incêndios ou tornados, um suicídio colectivo e binário, feito aos pares – Contava-se no País Vasco que da colisão entre dois helicópteros podia nascer uma espécie de faísca, pelo embate forte e aéreo – Essa faísca caía sobre a terra, antes dos dois insectos já mortos, e essa faísca servia de semente – E no local do suicídio aéreo, nascia na terra um girassol. Daí um suicídio que dá vida – Como de uma forma ou outra o suicídio de um escorpião enche de vida a casa da avó, com os primos e primas a correrem excitados.


Antes de prosseguir com a história do suicídio no homem, o mais complexo e múltiplo, contou-me três histórias sobre o incesto na vida marinha, e como acreditava que a sua avó continuava a lavar a louça agora no fundo mar, onde é mais fácil de o fazer, na água quente das Bermudas – A sua avó e muitas outras a ouvirem a música dos golfinhos. Por momentos pensei que já não prosseguisse a história do suicídio na vida animal e estive certo, porque essa, pela sua complexidade, ficou por contar.




Nuno Brito

Festa campestre, o girassol, o gelo

Julian Artl passou uns tempos em minha casa. Era editor de uma revista de literatura que começava a receber boas críticas. Escreveu uma novela fragmentada e dois livros de contos. Nunca os publicou, só tinha um exemplar de cada uma das obras, com encadernações baratas. Apagou os ficheiros do computador. Nunca os tinha enviado por mail a ninguém, embora me tivesse lido vários contos e partes da novela ao telefone. Num domingo de chuva foi até à foz, estacionou o carro e atirou os três exemplares para o fundo do rio, na parte onde saíam uns esgotos e onde as tainhas saltavam e lutavam pelo seu pedaço de lodo – Como se fossem escritores – Disse-me ao telefone Artl – As tainhas pareciam escritores – Ri-me, não da frase em si, mas da sua voz, de quem tinha bebido muito. Falou-me sobre tainhas e literatura acidental. Imaginei as pastas de papel no fundo do rio. Alguns dos textos mais sinceros e completos que tinha lido, forravam o fundo do rio. Um dos contos falava de uma borboleta – Uma borboleta escritora.

Enquanto tinha estado em minha casa, tinha por hábito, cozinhar gelatina ao fim da noite. Gelatina de morango com rum. Comia enquanto via um filme, não falava muito. Às vezes quando chegava a casa, via-o a cozinhar a gelatina artesanal. Comprava no supermercado, folhas de gelatina de marca branca, e com um marcador azul, usada para escrever nos cd’s, escrevia nas folhas de gelatina alguns contos completos. Um dia vi, seis folhas de gelatina que serviam de páginas a um conto. Li todo o conto. Artl estava no quarto de banho, não reparou que eu já tinha entrado. Toda a casa cheirava a haxixe e o espanta espíritos estava desalinhado. A panela estava cheia de água e de rum.


Percebi porque é que o meu dálmata estava doente. Artl dava-lhe gelatina de rum e morango enquanto eu estava a trabalhar. Nunca saía de casa, por mais que eu lhe dissesse, para ir ao parque, ao estádio, conhecer a cidade, ver igrejas e museus, Artl era licenciado em História de Arte.
O cão comia a gelatina feita com as folhas onde estavam alguns contos inéditos de Artl. Reparei no seu prato as bordas da cor do morango que ele lambia até à aflição. Imaginei, que Artl pusesse também xanax esmigalhado na gelatina ou uma ou outra droga legal que mandava vir pela net. Para o estômago do dálmata a mistura devia ser corrosiva. Tinta de marcador cozida na água, rum e muito açúcar. Reparei que o dálmata dormia na varanda de barriga para o ar. Parecia estar a ter um sonho erótico. Talvez de uma cadela spaniel. Imaginei também Artl a aparecer no sonho do meu cão, com uma taça de gelatina e a Spaniel ao lado entuzada ao lado do meu animal. Chamei-o várias vezes mas não acordou. Deixei-o dormir e liguei a televisão para ver o resumo das notícias do dia. Artl saiu do quarto de banho. Sentou-se à minha beira. Fiz de conta que não tinha visto o seu conto. Falamos um bocado. Depois disse-me que estava a fazer gelatina e foi à cozinha. Pôs o rum a cozer com as folhas onde estava o seu conto.

Alguns contos consegui salvar nos dias seguintes. Enquanto Artl dormia descobri três desses contos. Doze folhas no total escritas com uma letra perfeita. O conto falava de um homem que vai ver uma exposição de escultura clássica. As personagens, as estátuas do museu falavam entre si sobre o visitante, que era uma atracção. Falavam dos seus calções, do seu penteado. Como se o museu fosse móvel e fosse todas as pessoas que entravam. Um museu único e vivo, sempre aleatório de gente que entra e sai. Trouxe-o para a beira do computador e transcrevi-o. No fim havia um pequeno aforismo sobre a perenidade do suporte.
Art foi embora três dias depois. Ao contrário daquilo que pensava, a saída de Artl foi para o meu cão, indiferente, como se ele nunca tivesse entrado. A sua passagem na literatura foi feita do mesmo modo, como se nunca tivesse escrito.
Transcrevi de uma folha de gelatina “Três caras no gelo”. Nunca mais tive notícias suas


Três caras no gelo

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Ao lado da sepultura de Adriano há um ringue de gelo, um castelo e um homem estátua. Há também uma ponte com muitos anjos, um anjo de bronze no cimo do castelo, e um marroquino que vende guarda-chuvas. No ringue de gelo está uma rapariga sozinha a patinar, como que por missão, repete-se (como que por missão) a rapariga parece a rapariga mais triste do mundo, mas cumpre a sua missão, patinar, ser triste, estar neste conto.
A rapariga patina e escreve um poema no gelo, que não aparece porque no gelo já há muitas riscas, tal como em muitos braços e na alma de muitas patinadoras solitárias. Há muitos riscos que se fazem, e sobretudo, os riscos não se podem apagar, aconselhou-me, um anjo, um verdadeiro anjo, que para apagar um risco, se tem que desenhar um novo risco por cima, seja na memória, nos braços, numa conversa, em toda a história da humanidade: Nada se apaga, tudo se constrói/escreve/ relaciona por cima. E há vários riscos e os riscos de baixo, que não cicatrizam, na (memória, nos braços na parede) vão perdendo em força, porque há informação nova que se sobrepôs. Amanhã vou fazer uma tatuagem, a imagem de uma rapariga que levanta voo agarrada a uns balões; Foi desenhada por Banksy nos muros da Palestina. Pedi na loja das tatuagens que ocupasse toda a parte de cima do braço direito.


Patinei durante a tarde toda, mais uma vez ele não ligou, ninguém passava ao lado do castelo, patinava sozinha, só um homem de chapéu estranho me olhava; Parecia a pessoa mais sozinha do planeta, tirava apontamentos, consigo ver sem os olhos, consigo patinar no gelo, e sentir o meu sexo quente, enquanto tenho uma visão de cima do castelo, do outro lado da ponte, vejo pelos olhos do que tira apontamentos, vejo o seu caderno quadriculado cheio de escrita nervosa e rascunhado. Vejo como se estivesse no Google World, no topo de um satélite, o homem estátua, os que olham o homem estátua, aquele indiano que o aguarda à entrada da ponte, porque sabe que ele vai passar ali e está a chover, e provavelmente vai comprar um guarda-chuvas, e isso dá-me riso. Escrevi um poema no gelo, metia as palavras “girassol”, “Perenidade” e meta-gelo” – Tudo me dá vontade de rir. Várias coisas ficaram por dizer, debaixo do gelo há um girassol …


Só me falta vender um guarda-chuva, aquele é americano, tem dinheiro, vou-lhe vender um guarda-chuva, sei por Alá, e depois vou para casa. Está frio. Está frio fodasse.

Julian Artl

Nuno Brito

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Guarda-Rios



Este sangue é por te amar

João Aguardela


A ti devo a imagem fresca dos Guarda-rios da Lua,
que velam com os seus calções apertados, o leite gordo
que em cada cratera desagua, Obliquamente enrolam os seus cabelos
feitos de espera marítima e molham os pés no leite gordo que adormece,

trazem na lapela a sua enchada e na expressão o viso cansado,
dão doces sonhos à avó do guarda-discotecas, contam anedotas aos piratas,
apertam com todas as suas pontas tudo aquilo que acende e mata,

A ti devo a doçura de ser só coisa que pinga e prata queimada,
A fuga do Egipto, cada navio que parte, a ti devo as ninfas que jogam Playstation no fundo dos poços da lua, a ti devo o tudo e o nada,
O querer ser Só Coisa tua.


Nuno Brito

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sunset Boullevard

Ode Gente

O tempo, perverso em não existir, conjunto de limões em fuga,
com a sua saia de séculos, a masturbar-se lentamente,
A vir-se Em todas as direcções:
Depois mais rápido moldando a cara dos lavradores
Ofegante na sua vontade circular
Cilíndrico na espera – a subir o Chiado a descer o Chiado,
A entrar em cada casa, a passear na Afurada – a saber-se coisa-nada
ele
dá-te a mão, Espera,
Pinta frescos na sala, detiora os frescos da sala
tacteia nas tuas costas uma vontade nova, muda essa vontade
cria uma nova e uma nova e uma Nova
Escreve a lápis número 3 na sua sebenta:
“Este país não é para velhos” E masturba-se devagar e
depois Rápido: E adora Cláudio Magris e toda a Antena –
e acorda com Sebald e deita-se com Sebald, viola as filhas da revolução
e é manhã e insónia a entrar em todas as tabernas
a tingir de amarelo os calendários Michelin
a crucificar este, a encher de prazeres aquele, a masturbar-se
ciclicamente até ser só Vontade de ter passado:
Tempo-Cidade, tempo-cavalo, tempo-proletário,
tempo-homem, tempo-mulher, tempo camponês que dá a mão, tempo que escreve ensaios, tempo que canoniza –

Tempo que chora leite condensado para
cima da Sebenta, com o seu rosto quadriculado que é só medo e está passado –
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Tempo que é União e fala por nós, que tenta chorar mas só lhe sai musgo dos olhos, fresco e verde como o que cresce nas fontes de Raguzza, que dão uma água carregada de ferro (Resta-me a Sinceridade e a Saliva de todo o mundo)


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O Tempo a cavalgar com Zaratrusta, trusta trusta,, a procurar um efeito sonoro nos seus versos: Em busca deste ou daquele recurso estilístico que dê profundidade à rima imperfeita – a Injectar no peito uma vontade nova, um Sol líquido entre dois seios que são também montanha, onde descansa o olhar –
vários olhos que vêm os estorninhos dançarem numa nuvem única, que parece uma cabeça de Medusa, em permanente mutação: Criando novas formas do cabelo, novas expressões no sorriso …………….. Uma nuvem única que faz amor consigo própria, como se fosse com um filho por cima dos Campos de Marte - uma nuvem-estorninho a acompanhar Grieg na subida e a acompanhar Grieg na descida: Nasceu uma Estrela com baton a mais –


A Torre de Babel, as torres do Aleixo
A torre latina que só espera,
a doçura do
teu queixo – À procura da T-mésis per-fei-ta
Um triângulo com as suas três pontas acesas, que bebe demais e tem medo de cair na entropia, um triângulo-cio com problemas de erecção.

É só doçura a torre latina que cai, Gémea do silêncio e da solidão;
A nossa língua não é esquecida: Evoluirá até à deformação perfeita –
O Tempo a acender todos os interruptores da Calábria, a fechar os olhos aos missionários que merecem o descanso: A dar-lhes um sentido porque todas as coisas devem ter sentido, seja ele único ou múltiplo: Seja ele cavalo, cidade-industrial, pastor alemão, vidro, sebenta, aguardente, erecção, uma viagem a Nova York, a Grécia Inteira; seja ele vento, microscópio, lixívia de marca branca, rebanho de ovelhas, medo do escuro, uma canção de amigo, uns olhos verdes e tristes – Seja ele, fazer obras num talho, mudar de instalações o sapateiro, o preço da gasolina, o preço do trigo, o que o colhe, ou o que o come…

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Aqui não há espera: Come o teu queijo gordo e guarda que o teu lamento não seja eterno ………. Abre todas as janelas e deixa que o mar entre em tua casa – Nasceu do lodo, a simetria, a Vontade nova, em tudo nova; Não lhe quis dar um nome. Por superstição, deixei-a também flutuar como fumo de um cigarro que desaparece e é só instante. Deixei-o ir acordar os camionistas que seguem por estradas sem curvas, e precisam de dormir ……………………………… O que nos é estranho é adocicado e múltiplo, o que nos é estranho é o que Entra … Digo Entrar. Entrar Verdadeiramente::
Fomos alguém à janela com as suas pernas de cimento, fomos o pão negro que comia, um país na direcção do vento: O meu trabalho é partir diamante com a boca e encher de calmantes toda a Escócia e a gente austral. O meu país é só vento e aproxima o bem do mal: O meu país faz compotas de petróleo cristalizado, compotas de moral e de cimento que acordam os seus filhos pela manhã, compotas que indicam uma rota nova, que pedem boleia aos camionista, que têm medo de não passar bem a mensagem – É sua missão passá-la … Dizem - Bom dia! – A este e aquele que passa, que tiram o chapéu educadamente; Que abrem os seus corações aos estranhos nas estações de comboio. Compotas que desejam mesmo um bom dia, a este e aquele viajante e só esperam que a sua rota seja perfeita.







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Espero que alguém se deite comigo, e não saiba já se está acordado ou a dormir e que a fronteira entre a vigília e o descanso seja só um novelo com que brinca um gato, em tudo exílio e olhos verdes, um gato negro que entra e sai das torres latinas. Um gato com o sonho Americano e a Dormir por si adentro.
Manter vivas todas as Frentes e velar para que nunca se apaguem – Calcar um triângulo de espera - gelatinoso como o cancro da mama - Um Triângulo que incomoda os séculos, um triângulo que minga quando as pessoas se abraçam: um triângulo que acorda e cavalga, um triângulo que sabe três línguas e assassina por trás. Um triângulo-Solidão.

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Em métrica antiga abrimos todas as portas para que o rio passasse, negro e gorduroso no seu leito, a dizer que o país não se mete em sarilhos, em cada esquina um tétrico coro canta. Em cada esquina essa perda de cabelos dourados, wireless latino e agudo, entra em todos os jardins, come os teus figos maduros, Quê?
Com uma flor na lapela que é o seu lamento,
A criar estilos, a passear o cão, a ouvir o concelho de todos, a dançar regeton

O Tempo a ouvir Sitiados
A talhar a pedra - a ser já só pedra e dados
a construir sólidos telhados num labirinto guloso








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O Coro tétrico canta:

Tudo é febre e mudança
Panteão e virilha a arder,
Tudo é promessa líquida que muda,
e manequim a ferver

Tudo é perspectiva múltipla e
nos exige a atenção,
Tudo é língua, tudo boca ,
Ode como um cão!

Esculpe-me o cabelo, o sexo e o antebraço,
Recheia de chocolate os ouriços do mar, Dá-me a solução num único abraço,

Adoça e esculpe-me os limites: Faz deles, nenhum.

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Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto – Enche os Porões de riso e espasmo… Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora –

Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que há noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte, limite e União. Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço em tatuagem, nas costas em tatuagem, num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco – Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar - A literatura, só pode ser União …………… Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro (são precisos bons reflexos e ante-braço forte) – A Literatura tem de ser União –

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a “fome de gente” que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita – Para que os cegos a vejam multiforme a Afastar todas as nuvens carregadas – Para que a Fuga seja só ficar – Deserto a vestir as suas cuequitas com motivos ursinhos, a olhar para mim, espelho que não dorme porque abre todas as gavetas, todas as vontades para tirar de lá meias de licra – Sou só a vontade dos teus olhos. A Escócia a abrir trincheiras cor de rosa, África a sonhar com um incesto – Em tudo Maior –
A calçar as All-Stars - A jogar playstaition com a boca cheia de limão* Deserto a cavalgar a abrir portas – Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.

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Nunca quis ser um deserto, sempre quis ser um espelho ou um conjunto de limões _ Se fosse uma mulher, paria um espelho de espuma – Sei que a espera é o próprio Inferno, senão o Diabo Inteiro, sou o arquitecto de um labirinto:

Comer o labirinto
Sair
Ficar dentro – O Arquitecto é uma sombra e quer-se perder e espalhar pela praia ao fim da tarde, Criar a Sua Perda, um labirinto doce com muros que são folhas de gelatina, um arquitecto que só te quer a ti, todas as saídas e todas as entradas. A mais doce ária que é o azeite negro a escorrer pela boca de um paralítico. Esculpe-me o cabelo, o sexo, o antebraço, dá-me um abraço triplo, tira-me todo o ar, dá-me todo o Ar:
A noite com as suas cuequitas apertadas uiva por Maiakovsky
a língua da noite adormece os pescadores

………………………….Gosto de te ver sorrir …………………………………………




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O Riso é o Gerador Único do Universo,
só ele, quando, tudo o resto falha, permite que as estrelas,
(infanticidas por natureza), se mantenham vivas e não cortem as suas pontas,
Que as ligações frágeis, não percam vida e se extingam até à anorexia, perdendo luz e força,
ou se arrebentem por dentro sobre o seu próprio eixo desatinado (desatinando para aqui e para ali) Só o Riso é Deus, só ele cavalga e Molda verdadeiramente as caras,
só ele cria luz e espelhos de espuma, só ele goza a poesia, só ele fica sozinho, só ele dá vida.
Quem escreve “O Fim da História”, mais não faz do que a começar. Sou um recurso estilístico a olhar-se ao espelho, a beber chá verde pela manhã, a empapar o cabelo em gel …

Sou a vontade, em tudo malhada, de te ver sorrir*
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Lambi o sexo a um relâmpago de virilhas acesas
os seus pintelhos tornaram-me a boca da cor do azeite,
alguns engoli e escorri para os pulmões, vi o relâmpago a lavar os dentes e a cair por cima de uma biblioteca

a literatura (a primeira morte) só serve para unir – os fios que usa são dourados,
é também dourada a sua paciência e a sua vontade de conhecer o inferno.



Ode em mutação, poema recheado de vento, poema que cavalga e é lusitano - Que é só sede e é só vento, (vontade de rir de tudo) - Poema em rima cruzada a atravessar todos os rios, relâmpago a guiar numa auto-estrada em direcção ao sul – Poema a ouvir Belle Chase Hotel com a boca cheia de cerejas negras – Ode que canta um país que não quer amanhecer, e que é brisa e triste lamento, poema que é olhos teus e se alimenta de riso. Ode cão Ode cimento.

Sempre quis ser uma cidade industrial escocesa que Turner não conseguiu pintar, sempre quis ser o acordar dos operários, que calçam as suas ceroulas, afastam o medo (Criação Absoluta e único Motor de tudo) Todos os mails não enviados que recheiam a Rede de pontas gelatinosas e fazem explodir as estrelas – De tudo o que deve ser dito com o palato aceso.
Ode Gente, Ode canção
Ode lixívia que limpa uma campa
Ode-saia e alexandrina na rima, ode com dentes podres
viciada em cocaína – Ode Gente dentro de Gente, Ode cantina,

Ode canção, perfeita no gesto – Ode hospedeira da Easy jet, Ode-gente que chove, Ode-Nuvem que tapa e destapa as cidades Belgas, Ode a abrir os frascos de mel todos, a meter-te pirilampos nos cabelos, a acender de escuridão a noite – Ode que chora quando morre o seu amigo, Ode que brilha quando morre – O Mundo começou agora e já está na sua varanda de Susto uma rapariga com a sua saia carregada de vermelho – Ode Saída a encher os pulmões de relâmpagos - Um país Ocidental que nasceu numa paralítica dança em construção.

Ode tinta e mutação num copo de espasmos,

Ode de boca ao lado
O amor é como carne …