quinta-feira, 23 de junho de 2011

Duas variantes de coisas que ligam

Dormia com um labirinto de espuma dentro de si: o criador da escrita, através da qual todas as narrativas seriam feitas. Tinha no pulso um relógio em decomposição, orgânico e perene como qualquer gesto. De vez em quando os fios do labirinto ficavam da cor do âmbar e aí as pessoas perdiam-se porque só conseguiam olhar para os muros. No centro estava um touro quente. Disse-me um anjo que o labirinto estava desnivelado e tendia para o mar. Quinze eram as entradas e as saídas. A música também entrava no labirinto e ela perdia-se como todos e como todos desenhava a saída no ar. Dormia com o labirinto dentro. Cassandra, a que nada esquece, entrava no labirinto e encontrava a amnésia bem no centro. A amnésia transportava pólen nas patas de uns contos para os outros e ia fertilizando o estilo novo. Ele dormia, há quinze séculos, sem se aperceber que as águas tinham subido até ao quarto andar. E os blocos de notas estavam todos molhados. Também estavam molhadas as fotografias. A amnésia mete gel no cabelo, e uma mini-saia vermelha. Está no centro do labirinto que ora é um labirinto ora é uma rede. As pessoas perdem-se na mesma. É da natureza das pessoas perderem-se, é tão natural como um movimento de vanguarda, como uma abelha, como um copo de água. O labirinto é em tudo líquido embora por vezes as suas paredes congelem. Cassandra deita-se com a amnésia. E o psicólogo perguntava – O que é que inventou afinal? – A escrita – Respondia o labirinto – O mar cobria o psicólogo, depois o mar inundava o labirinto e ficavam algas no meio e bem no centro um esqueleto de baleia. Dormia com várias coisas que ligam dentro dele – Tens de te pôr nos olhos dos outros – Disse-me o caderno quadriculado, ou foi a minha mãe? As pessoas perdem-se na mesma, para se encontrarem. Do outro lado da morte – Dizia o labirinto através de um estranho eco. O eco descalçava-se e entrava no mar, e no continente seguinte ouvia-se o mesmo poema em métrica sáfica. O poema a lavrar os campos de trigo da América – Na forma de tractor. As pessoas perdem-se na mesma e por cima delas o sol brilha e reflecte-se nos espelhos do veleiro. Escreveu "Alegoria final" e "Composição sobre o gelo". Deitou-se (com o labirinto dentro) nunca tinha dormido.

Coisas que ligam

Tu que tudo desatas, prende-me novamente, animal invencível, amor
Safo

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Cassandra está na praia a fazer barquinhos de papel, de um caderno preto, com poemas seus de há muito tempo. Faz mais de cem barquinhos, depois entra no mar e vai pondo os barcos na água; Vê alguns irem ao fundo, outros são arrastados para areia. Alguns deles desaparecem, vão com as ondas. Um dos barcos tem escrito a marcador "Sentir é dois" – Outros versos do Rilke vão pelo mar dentro.

Vem ter à praia um veleiro, e nesse veleiro vem a amnésia: com os seus pés quadriculados e luvas brancas. A amnésia mergulha e nada até à areia. A amnésia segura Cassandra, beija-a na boca. As duas ficam de mãos dadas, mergulham. O mensageiro toca num piano de uma esplanada da praia a "petite suite" de António Fragoso: fica a ver, com as mãos trémulas, as duas a nadaram. A mensagem é o próprio mensageiro. Os barcos de papel vão cada vez mais longe.
A amnésia possui Cassandra debaixo de água. Cassandra esquece, esquece-se de tudo. O dia está roxo.


A amnésia conduz Cassandra a um túnel que passa por baixo da América - Abre a caixinha do sono, o sono liberta-se e os homens dormem. Cassandra dorme por fim; Nunca tinha dormido. E do seu sono cria-se a música, o primeiro esquecimento que corrige a vida: Começa a vida nova.

A amnésia cria a noite, e da noite faz o medo. O medo é quadriculado e chora cal para cima do seu diário. Um choro ácido que queima o papel e deixa furos no caderno de uma vida. Depois fecha o diário e atira as chaves ao mar - A amnésia cria outras coisas que ligam, e dá as coisas que ligam aos homens. Dá-lhes a rede, a possibilidade, o medo e o dia. A amnésia beija o nosso século na boca, dá-lhe de beber, a bebida é uma rede líquida, uma rede que parece âmbar. O nosso século lambe a amnésia – Antes isto tudo era mar – Há um esqueleto de baleia no cimo desta serra; O escritor mete o sono num círculo, o círculo está fechado. Ninguém dorme. Os que têm as chaves protegem o círculo. Os sinos dobram. O círculo é fluorescente. Um futuro antiquário compra o círculo do sono. Há quinze mil anos atrás. Porque nunca dormiu. A amnésia lê o diário – Hà lá várias frases sublinhadas, citações de Cesariny, Cioran. A amnésia tem a noite na mão, dá a noite a comer a uma cotovia, e a cotovia levanta voo, e vai deixando cair bcados de noite do bico por onde passa, da Austrália ao Cabo Horn tudo fica escura. Depois volta para o seu ninho. Adormece.


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sexta-feira, 17 de junho de 2011

A mais negra

I.

A memória dobra-se, estende-se pelos campos cheios de pirilampos – Sou ela, nado no fundo do lago de Patrícia; estou em todas as línguas, nas suas fronteiras quentes e fluorescentes – Passo: passo sempre, segura: preciso de calor, tenho a boca torta cheia de medo e o coração recheado de leite condensado: No meu útero um relâmpago, bebo o caminho que tenho à frente porque o futuro é líquido, derrete-me da boca. Sou a possibilidade em tudo múltipla de te ver sorrir : Recheio-te de estrelas – Nunca lhes cortarei as pontas, nunca lhes cortarei as pontas – Deixá-las crescerem, entrarem na rede, precisamos da rede, mas comemo-la; ela equilibra-nos, mas ela faz-nos perder - as pontas da estrela crescem outra vez: Entram nas casas: Do Pólo Norte à Austrália. Na Nova Zelândia abrem a porta à estrela, ela entra, cheia de sede, porque procura, procura perder-se no interior do humano, duplo-poço contínuo. Sou a memória, uma rede contínua, às vezes estendem-me pelos campos,tapo os pirilampos com o meu manto de seda e vêem-se várias luzes fluorescentes sobre o pano que sou eu

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II.

Estou agora num ringue de gelo em Viena, e as tropas aliadas estão prestes a entrar aqui, a ficção mergulha na realidade, escrevo um verso de Rilke no gelo "Sentir é dois"; "Amar é mais" completa um outro patinador que vem atrás de mim, o registo é logo apagado por outros patinadores, outras linhas se sobrepõe a mim, memória última: no gelo, na comunicação, na história da humanidade – O patinador que me segue escreve outro poema, e as linhas dos patins no gelo tornam-se fluorescentes por instante, enquanto os americanos entram na cidade lê-se um poema que fala de perenidade, de gelo e de girassóis, o poema é assinado por Alma Mahler, sujeito poético do patinador que me segue. No gelo escreve outros aforismos aos quais logo se sobrepõem outras riscas de patins – Nunca se apagou nada até hoje, sempre se falou/escreveu/criou por cima, apagar é impossível, apenas é possível renovar, revitalizar, criar por cima – Os patins são de marca – Sou a memória: tenho uns patins suiços, de marca, já competi na Suécia, já estive dentro dos cactos: Ao meu lado dorme um homem que quer esquecer – Acorda, levanta-me a saia beje, fala de Alma Mahler, fala-me de um avião que como todos aviões não pode cair, não pode voar, não pode arrebentar, apenas lhe é permitido subir e chegar ao seu destino: A torre latina de escada em caracol tomba, o continente treme de líbido, não se consegue conter mais, do Perú ao Equador todos os faróis dão o sinal, uma pirâmide de fogo está em fuga contínua pelo deserto. Meteste-me pirilampos no cabelo, no porto de Lima, à noite escura, num sopro quente de Verão: o Chile parte-se ao meio - a amnésia beija-nos na boca – Temos caminho à nossa frente e bebemo-lo – A amnésia diz: isto e aquilo deve ser esquecido, e por isso a pirâmide cavalga, em fogo, cheia de botijas de gás dentro. A tempestade beija a amnésia. Nossa Senhora da fertilidade recheia-me o útero de relâmpagos e cerejas – A amnésia mete a música entre as pernas, é a pintora mais perversa; pinta árvores, mete céu entre as árvores – Possuí a música que possuí o céu, que possuí a cidade – Os muros precisam de ajuda, toca um trompete do quarto andar, por uma alegoria mais doce, a ficção mergulha na realidade. Atirei a chave do diário para o fundo do mar, o farol acendeu-se.


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III.

Levantaram-me as saias nas traseiras do convento, um homem que quer esquecer, injecto-lhe uma vontade Nova nos olhos, vejo-os descerem pela montanha, alguém me escreveu uma carta: Não te esqueças de ir para a varanda ver esses olhos verdes passarem/ fugirem/ desaguarem no mar – Vejo todos os olhos em fuga, todos os olhares a descerem pela montanha, a dobrarem-se sobre o seu próprio eixo, por uma visão Plena* Uma visão que tudo abarca, todos os sentidos a fazerem tremer a terra: ela não aguenta mais o seu líbido e treme; Sou a mais obssessiva de todas as paixões, tenho um gorro azul que a loucura me deu – E não consigo esquecer, como Cassandra, tudo absorvo, como uma esponja da alma condenada à mais doce e pergisa das penas, nada esquecer – A patinadora escreve agora uma ode de Ricardo Reis, depois uma de Petrarca e um homem sentado ao lado do ringue aponta tudo numa mortalha, todos os poemas, depois enrola tabaco nas mortalhas e fuma-os – No gelo as marcas também desaparecem, a letra carolina de uma caligrafia perfeita fica com riscos por cima – São agora muitos os patinadores. Os exércitos americanos entram na cidade. Viena está pronta para ser aliada. A guerra é agora um fio com que brinca um gato, um fio que une os pólos. Um fio que é um dia de chumbo. Pedi ao patinador que me segue que personificasse um sentimento: ele personificou o medo: Escreveu que ele era quadriculado e em tudo geométrico, como o voo previsivel de uma mosca, mas que tudo agarra por trás como uma rede. Levantaram-me as saias nas traseiras de um convento, um homem que quer esquecer: a minha saia é curta e beje – Vejo do canto do espelho três pastorinhos búlgaros, os que velam: para que seja noite e dia ao mesmo tempo, um dia roxo – A amnésia beija-nos na boca, a ficção mergulha na realidade – Vejo-a passar de bicicleta ao lado do Farol de Alexandria, com os barcos ao fundo, os amantes ao fundo; ao fundo também eu, novelo que faz esquecer – Que as minhas mãos ardam se me esquecer dos teus olhos – Estamos na Guerra Colonial, estou na líbido de um soldado português:

- E então eu dizia às pretas: Punho Punho – E elas batiam-me uma punheta.

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Apressei o fim da história, virei todas as páginas com os meus dedos compridos: os sósias do fundo alimentam-se da minha líbido: Estou no lago quente de Patrícia, onde todos os que aquecem se banham. Os sósias do fundo são só um: o mesmo homem com a mesma touca às riscas. Olham-se num espelho Barroco abandonado no fundo do lago. De vez em quando inventam a escrita para que novas civilizações contem as suas histórias, as transmitam aos seus descendentes: Tornam a Literatura Possível – Injectam leite condensado na Estrela para que as suas pontas cresçam com mais força: A literatura entra em todas as casas, acende todos – Dormem no meio das balizas subaquáticas. O seu empate é uma forma de amor. De que falamos quando falamos dele? Um diário de uma vida cai de um vigésimo andar. A amnésia possuí o mar, permite as marés, permite a lua que se recheia de encontros. A amnésia leva pólen nas patas, para outro continente. Um abraço pré-hispânico em tudo eterno há-de polarizar todos os movimentos, todos os gestos humanos, toda a Vida* O que há antes dela? Depois dela? Apenas pólen nas patas, um ramo de violetas e uns patins de marca. Os canhões americanos rodeiam o ringue de gelo.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Meta-sono


Que a amnésia nunca nos beije na boca
: Roberto Bolaño – Manifesto Infrarrealista



O sono descalça-se, desenha o trigo a aguarela,
Amarelo que foge com o vento,
o sono descalça-se.
Como um fabricante de sinos do futuro,
o lavrar subaquático dos campos de Marte:
mudámos as linhas, todas,
acelarámo-as em direcção ao coração;
Jiacina abre a caixinha do sono, ele expande-se em rede,
como uma estrela fluorescente,
entra nas casas, nos prédios, nos edifícios municipais,
os homens dormem:
O sono põe céu entre as árvores
e põe céu entre as casas, e põe o céu entre as pernas –
o céu permite a música,
o céu acorda a música,
o céu possuí a música –
A música põe o céu entre as pernas,
como uma cabeça viva, extremamente viva –
O orgasmo das raparigas é clitorial – o céu sabe isso –
O céu lambe a música, o sono foge para dentro dos búzios
com as suas meias de lã grossa, de fora,
por uma alegoria mais doce injectamos leite condensado no peito,
na sede de contar uma história hiper-real
recheámos uma estrela suicida de memórias,
ela escreve a giz no espelho que o sono venceu o medo,
e que a música venceu o medo:
a casa é mais ampla agora, o arado sulca a terra fluorescente,
pelo fim de todos os símbolos damos a mão,
pelo último mito bebemos da boca:
uma só –
Lancetaram o útero à loucura
só ela pode ter filhos –
O amor é a união do medo com a música,
tinha a boca ao lado e a vontade de possuir tudo.
Jiacina liberta o sono,
ele cai da boca como leite condensado:
o sono têm a música entre as pernas –
Já só é possível a calma.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

outra forma de mentir

I.
Sou a verdade, uso uma mini-saia vermelha,
Vejo os homens masturbarem-se das suas janelas enquanto me olham,
passo nas ruas de Alexandria, Berlim, Tóquio, Budapeste,
Bernini esculpiu-me, Whitman descreveu-me
mas nunca nenhum homem me possuiu
Por mim correrão futuros antiquários ainda por nascer
Afundo-os de desejos, mutilo-lhes os sonhos
Sou múltipla e tudo acendo sobre a forma de calor,
Quem tem medo está mais próximo de mim, estou na boca dos amantes,
Nos seus ternos abraços:

II.
A minha visão é fragmentada de tanto olhar para o sol,
um fabricante de sinos do futuro, também ele cego,
mergulha dentro de mim e badala como do fundo de um lago suíço,
não tenho sono, nunca dormi até hoje,
ouço o badalar link link link link,
subaquático e triste:
Todos os comboios correm até mim,
velo o sono de um faroleiro com medo do escuro,
teço-lhe os sonhos de fios dourados,
puxo as extremidades para o centro da alma e sento-me a chorar,
também eu tenho medo do escuro e me deito à sombra
as cidades possuem o céu,
o céu possuí a música
e a música possuí-me a mim,
sou todas as viagens, a meus pés construíram Tróia,
os semi-deuses esculpiram Cápri dos meus joelhos -
A amnésia beijou-me a boca;
O futuro líquido na forma de dois joga pólo aquático consigo mesmo,
tudo é um, tudo está condenado a ser um,
criei a poesia, teço todas as narrativas,
mergulho em todas as prosas,
todas as ficções me atravessam a nuca,
de um ao outro lado um comboio apita, um rio passa,
acorda um gato em queda,
os homens têm caminho à sua frente
e bebem o caminho, porque têm sede e o futuro é de beber,
as memórias também são de beber, o amor é líquido,
apesar de não existir também eu bebo o caminho:
Nado dentro de todos os homens;
Não penso, sinto, não corro, minto.
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quarta-feira, 1 de junho de 2011

I.

Sou a culpa,
Tenho o útero recheado de girassóis
e a boca cheia de relâmpagos –

as minhas mãos são às manchas,
os meus dedos tocam todos por dentro,
dobram como sinos,
desenrolam a memória -
As sombras provam-nos que há sol
mergulho nele – um abraço desde dentro,
sou a culpa, o meu século é às manchas e
é só mergulho em acto contínuo
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II.

A dor é azul,
O medo é azul,
marítima é também a vontade de te abraçar,
de nadar por ti dentro,
só o riso é deus, só ele molda verdadeiramente as caras,
só ele folheia verdadeiramente e abre,
vêm a voz e recheia-me de relâmpagos,
O anjo lambe o futuro