quinta-feira, 23 de junho de 2011

Coisas que ligam

Tu que tudo desatas, prende-me novamente, animal invencível, amor
Safo

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Cassandra está na praia a fazer barquinhos de papel, de um caderno preto, com poemas seus de há muito tempo. Faz mais de cem barquinhos, depois entra no mar e vai pondo os barcos na água; Vê alguns irem ao fundo, outros são arrastados para areia. Alguns deles desaparecem, vão com as ondas. Um dos barcos tem escrito a marcador "Sentir é dois" – Outros versos do Rilke vão pelo mar dentro.

Vem ter à praia um veleiro, e nesse veleiro vem a amnésia: com os seus pés quadriculados e luvas brancas. A amnésia mergulha e nada até à areia. A amnésia segura Cassandra, beija-a na boca. As duas ficam de mãos dadas, mergulham. O mensageiro toca num piano de uma esplanada da praia a "petite suite" de António Fragoso: fica a ver, com as mãos trémulas, as duas a nadaram. A mensagem é o próprio mensageiro. Os barcos de papel vão cada vez mais longe.
A amnésia possui Cassandra debaixo de água. Cassandra esquece, esquece-se de tudo. O dia está roxo.


A amnésia conduz Cassandra a um túnel que passa por baixo da América - Abre a caixinha do sono, o sono liberta-se e os homens dormem. Cassandra dorme por fim; Nunca tinha dormido. E do seu sono cria-se a música, o primeiro esquecimento que corrige a vida: Começa a vida nova.

A amnésia cria a noite, e da noite faz o medo. O medo é quadriculado e chora cal para cima do seu diário. Um choro ácido que queima o papel e deixa furos no caderno de uma vida. Depois fecha o diário e atira as chaves ao mar - A amnésia cria outras coisas que ligam, e dá as coisas que ligam aos homens. Dá-lhes a rede, a possibilidade, o medo e o dia. A amnésia beija o nosso século na boca, dá-lhe de beber, a bebida é uma rede líquida, uma rede que parece âmbar. O nosso século lambe a amnésia – Antes isto tudo era mar – Há um esqueleto de baleia no cimo desta serra; O escritor mete o sono num círculo, o círculo está fechado. Ninguém dorme. Os que têm as chaves protegem o círculo. Os sinos dobram. O círculo é fluorescente. Um futuro antiquário compra o círculo do sono. Há quinze mil anos atrás. Porque nunca dormiu. A amnésia lê o diário – Hà lá várias frases sublinhadas, citações de Cesariny, Cioran. A amnésia tem a noite na mão, dá a noite a comer a uma cotovia, e a cotovia levanta voo, e vai deixando cair bcados de noite do bico por onde passa, da Austrália ao Cabo Horn tudo fica escura. Depois volta para o seu ninho. Adormece.


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