terça-feira, 17 de maio de 2011

Meta-gelo

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E porque razão nunca cometeu pessoalmente um crime?
É provável que não o tenha feito porque escrevi os meus livros.
Jean Genet – O sorriso do anjo

I.

Enquanto patinava, escrevia no gelo um verso de Petrarca. À noite a máquina passava e limpava todas as linhas. Já de tarde as linhas que os outros patinadores deixavam no ringue sobrepunham-se à rima. Todos os dias deixava um verso novo. Pasolini traduzia-os para a linguagem dos rios: Nada é criado de novo, só se apagam umas linhas criando outras por cima; em todo o diálogo que é o posto da morte, em toda a história que derrete para dentro da boca.
II.
Algumas tardes vi São Bento de Núrcia a encostar-se nas paredes do ringue; ficava a observar-me, apontava num pergaminho que trazia o verso novo do dia e ia-se embora. À noite a máquina apagava todos os riscos e o gelo ficava liso. Sonhava às vezes que o verso ficava fluorescente no gelo e reflectia-se no tecto espelhado do ringue. Era sempre nova a vontade e a pressa de dizer tudo. Os meus patins eram de uma marca boa e suíça. Isso dava confiança. Mas as linhas no gelo criavam entropia ao verso; um atrito necessário como toda e qualquer civilização deve ter: Como em toda a história de humanidade, que não vale mais do que uma menina comer o seu corneto de morango. Na boca, o creme a derreter condensa todas as guerras, as disputas imperiais, os sonhos eróticos dos papas, o casamento dos reis católicos, o genocídio arménio, o do Darfur: a menina têm-nos na boca, a derreter na sua língua quente: Pasolini traduz a história da humanidade para a linguagem dos rios – eles não pensam, e não pensar é subir – transformar-se em nuvem. São Bento apontava os versos de um poeta do futuro e voltava para o seu convento de Montecassino. Por baixo do gelo havia um infrassól que guiava toda a literatura, toda ela é acidental e corre a toda a pressa engrossando as suas pontas, repetitiva e obsessiva. No século três passou-se dos rolos de papiro para o pergaminho. Isso tornava mais fácil a pesquisa por temas e autores. Não era preciso desenrolar o papiro, bastava virar a página. Muitos livros foram perdidos porque não foram passados de papiro para pergaminho e o papiro era um suporte condenável pela sua premiabilidade ao tempo, extremamente frágil e erosivo. Decidi-me pelo gelo como suporte, o mais virtual. Em fluorescente métrica nova escrevo uma rima de Petrarca no gelo. Os franco-atiradores passam por cima. Estamos em 1945 em Roma. Qualquer gesto humano me excita violentamente, amo tudo quanto fluí. Adoro um infrassól que permite todas as possibilidades. Ouço os bombardeamentos lá fora e agora estou sozinha no ringue. Bastava virar a página, mas tenho creme na boca, toda a história – Enquanto ordenarem a história por blocos não terei calma, ela é fluida como o rio que Pasolini traduz – Pasolini traduz também as montanhas e os lagos, e os pirilampos acenderem-se é só um fenómeno como a fuga para o egípcio de um povo perseguido. Preciso de escrever assim como preciso de nadar, porque o corpo assim mo exige.
III.

As linhas de tempo também não existem, disseste-me em doce estilo novo, abraçámo-nos, falamos de linhas a tarde toda – Depois voltei para o ringue. São Bento apareceu, dessa vez não foi um verso de Petrarca que escrevi, mas um de Mário Santiago Papasquiero, em forma de manifesto: Os manifestos aquecem e levam pólen nas patas. Deixam-no cair à sua passagem e fertilizam as pessoas. Esqueci-me dos bombardeamentos, as sirenes tocavam. Mário Santiago Papasquiero ainda não tinha nascido, era uma estrela bebé recheada de memórias futuras: Estava-mos em 4 de Junho de 1945, os aliados entravam na cidade. Escrevi no gelo um poema seu:

He introducido mi vida
en la vulva radiante de la estupefacción
/ Mi droga es respirar este aire caliente /
Traducir a la luna en mi piel
: hermanar mis heridas con su savia creciente :

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