terça-feira, 17 de maio de 2011

Alegoria de Safo

I.

Faón tinha uma joaninha a subir-lhe o pulso, a pulsação era forte e segura, guiava-se pelas veias azuis: fazia muito calor na praia em frente ao mar Jónio. Vinte e cinco séculos depois os navios aliados chegavam à praia. Fazia muito calor, não é da natureza das joaninhas estarem nas praias, mas sim nos jardins. A escola de fêmeas tinha um jardim que dava para a praia; fazia muito calor. Safo segurou-lhe o antebraço, pôs-lhe a mão no peito. Faón não resistiu. Era sua aluna na escola de fêmeas. Por essa altura as lições eram sobre a possibilidade e a aparição. Discutia-se Heidegger vinte e cinco séculos antes de ele ter nascido, e ainda pouco tempo depois de surgir a virtualidade da escrita já Safo se perdia nos links da loucura. A joaninha levantou voo e foi pelo mar fora.

II.

Faón tinha pena de Safo, uma forma estranha de adoração, misturada com um pouco de vergonha. Safo era já velha. Estava completamente apaixonada por Faón. Escrevia à noite rolos inteiros de poemas, na métrica depois chamada sáfica, sobre o peito de Faón, o calor, a energia de Faón. Ouvia o pássaro de fogo de Stravinsky lá fora, vinte e cinco séculos antes da sua aparição. O pássaro de fogo a entrar pela janela, a atravessar-lhe o peito: Faón era a sua melhor aluna. Nesse tempo discutiam a possibilidade e as alunas escreviam sobre Heidegger. Faón resistia nos intervalos. Não sentia atracção por mulheres.

III.

Heidegger dizia que o manifestar-se é um não mostrar-se, ao mesmo tempo, na mesma linha de tempo, onde cabem todos eles, todos os fenómenos, Safo entrava nas águas quentes do mar Jónio com Faón, Faón dava-lhe a mão. Por pena, sentia apenas uma grande admiração, embora soubesse que já há muito a tinha ultrapassado no conhecimento de Heidegger e do futuro. O futuro líquido percorria-lhe o pulso e Safo lambia-lhe o pulso. Sentiam as algas nos pés, era de noite, a água estava muito quente.






IV.
Assim que Safo se lançou do promontório para o mar Jónio, as águas subiram mais um pouco: Mais tarde provocaria uma inundação em Veneza assim que a cidade fosse formada, porque o mar guarda um rápido registo, uma saga aflita, na memória dos moluscos do fundo, nos casulos marinhos. Franz Gillparzer escrevia em Viena cinco actos para uma peça sobre Safo. Estavamos no início do século XIX.

V.

Faón tinha-se apaixonado por um rapaz. Safo notava a sua desatenção nas aulas. Resistia-lhe agora, tornava-se mais distante. O mar subia em métrica sáfica, em links apressados que conduziam fios para dentro de Safo. Link, ouvia-se link, as joaninhas a levantarem voo com o calor no jardim da escola, suspenso por alicerces seguros. O rapaz calcava as uvas. Safo e Faón provavam o vinho tinto mais tarde, quente na praia. Deram o último beijo. Safo chorou a noite toda, deixou que o pássaro de fogo lhe picasse os olhos e dançou. Ligou a internet, viu o último texto de Faón, digitalizado do papiro, a narrativa falava sobre a perenidade de um beijo, sobre escalas de tempo apressadas, sobre casulos, sobre girassóis,tartarugas, labirintos e anagramas. A narrativa incluía poemas de métrica Sáfica. Safo correu para o bosque. Foi aconselhada por um dos que fazem esquecer. Aconselhou-a a lançar-se ao mar. Dirigiu-se ao promontório. Atirou-se.

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