terça-feira, 17 de maio de 2011

Carta a Marília

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Definir poesia é dar as mãos, deixar o ar crescer em espiral, é como atravessar a ria, regar um girassol, toda a poesia simbolista não chega para acender um pirilampo e no entanto ele acende-se no seu cio fluorescente, Link Link Link – Três pastorinhos, escorre-lhes azeite negro pelos beiços, depois da alucinação mais perfeita num boulevard de Paris, leio-os, lês-os, lemos-os, o pirilampo é também representação e recheia-se de noite, de pontes, de pontas seguras que crescem e entram nos prédios – Se tiver saudades de alguma coisa vêm a aranha e come-o. Há métodos seguros de armazenar a memória, nos casulos negros marinhos. A estrela cresce de memória e abraços contra o fim do suporte e do símbolo. O último mito estará escrito na parede, debaixo das árvores e todos trarão antenas nas mãos e bocas cheias de cerejas. O Joaquim deu-me um livro sobre a perenidade. O livro foi escrito pela humanidade inteira. Não era um livro, era uma maçã, eu trinquei a maçã. Vimos a montra, entramos na montra, os artigos eram antigos e desadequados – definir é como estar à sombra, só a luz define, só ela revela e mostra as coisas como aparição, não se mostrar é revelar os outros – a abelha leva o pólen nas patas, a abelha leva o pólen nas patas – Definir é mostrar por dentro, qualquer manifestação é um não mostrar-se, a febre dos cactos, lenta e interna, a baleia sonha com leite condensado, as estrelas caem para dentro da boca, e isso Marília, isso é definir poesia.
Criei dez heterónimos de reflexos rápidos, gostam de jogar badmington, fomos beber gin tónico, aos dez paguei as bebidas, depois cada um fez um poema sobre a perenidade, dez poemas sobre abelhas que dei a ler ao doutor, o doutor injectou-me futuro no peito, futuro líquido a entrar nas artérias do coração, o tempo medido a expandir-se no pulso enquanto as estrelas suicidas de Tule se rebentavam no seu próprio eixo, Rimbaud entrou na sala do esquecimento, a abelha enche-se de pólen com ou sem simbolismo – Maiakowsky bebe a noite estrelada. Sò Bolaño escreveu no ar, com um jacto, também isso foi representação da perenidade Marília, como o nosso abraço. Não estamos aqui por causa da gravidade, mas porque amamos o chão. Aqui todos os textos se unem num ponto único, estrela em espasmo contínuo. Qualquer movimento de vanguarda leva pólen nas patas, entra nas fábricas com as suas meias de lã grossa. A vontade é em tudo nova de te possuir, de engrossar a estrela, de em zeros e uns esquecer tudo para reforçar a memória de pontas mais fortes. Dez poemas que dei a ler ao doutor. Definir poesia é dar as mãos.

Perguntei aos meus dez heterónimos o que era o amor, e dei-lhes dez páginas em branco, todos eles saíram da sala, fiquei sozinho Marília, fui jogar bingo e beber, beber para esquecer. Depois em casa reuni todas as definições de amor que encontrei, perdidas em cartas, em poemas, em dicionários, em enciclopédias, todas as que me foram dando ao longo da vida e registei na memória. Não há amor há vida sem desespero de viver, dizia Camus. Também esta guardei e adormeci. No dia seguinte fui jogar voleibol com eles. Os cinco heterónimos de um lado, os cinco do outro. Eu era o árbitro que lhes definia a personalidade. A bola era de fogo. Uma vez bateu-me na cara. O pavilhão era revestido de espelhos. Não há elementos externos se tudo for uma e a mesma coisa. E tudo é uma e a mesma coisa Marília, em novelo cdontínuo, em direcção ao início de tudo. Apressar o início, a primeira dança, o primeiro canto, é essa a direcção da poesia.

Os meus dez heterónimos de viso assustado escreveram nas suas dez páginas em branco: fá-lo com os mortos

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