segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Guarda-Rios



Este sangue é por te amar

João Aguardela


A ti devo a imagem fresca dos Guarda-rios da Lua,
que velam com os seus calções apertados, o leite gordo
que em cada cratera desagua, Obliquamente enrolam os seus cabelos
feitos de espera marítima e molham os pés no leite gordo que adormece,

trazem na lapela a sua enchada e na expressão o viso cansado,
dão doces sonhos à avó do guarda-discotecas, contam anedotas aos piratas,
apertam com todas as suas pontas tudo aquilo que acende e mata,

A ti devo a doçura de ser só coisa que pinga e prata queimada,
A fuga do Egipto, cada navio que parte, a ti devo as ninfas que jogam Playstation no fundo dos poços da lua, a ti devo o tudo e o nada,
O querer ser Só Coisa tua.


Nuno Brito

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sunset Boullevard

Ode Gente

O tempo, perverso em não existir, conjunto de limões em fuga,
com a sua saia de séculos, a masturbar-se lentamente,
A vir-se Em todas as direcções:
Depois mais rápido moldando a cara dos lavradores
Ofegante na sua vontade circular
Cilíndrico na espera – a subir o Chiado a descer o Chiado,
A entrar em cada casa, a passear na Afurada – a saber-se coisa-nada
ele
dá-te a mão, Espera,
Pinta frescos na sala, detiora os frescos da sala
tacteia nas tuas costas uma vontade nova, muda essa vontade
cria uma nova e uma nova e uma Nova
Escreve a lápis número 3 na sua sebenta:
“Este país não é para velhos” E masturba-se devagar e
depois Rápido: E adora Cláudio Magris e toda a Antena –
e acorda com Sebald e deita-se com Sebald, viola as filhas da revolução
e é manhã e insónia a entrar em todas as tabernas
a tingir de amarelo os calendários Michelin
a crucificar este, a encher de prazeres aquele, a masturbar-se
ciclicamente até ser só Vontade de ter passado:
Tempo-Cidade, tempo-cavalo, tempo-proletário,
tempo-homem, tempo-mulher, tempo camponês que dá a mão, tempo que escreve ensaios, tempo que canoniza –

Tempo que chora leite condensado para
cima da Sebenta, com o seu rosto quadriculado que é só medo e está passado –
………………………………………………………………………………………………………...
Tempo que é União e fala por nós, que tenta chorar mas só lhe sai musgo dos olhos, fresco e verde como o que cresce nas fontes de Raguzza, que dão uma água carregada de ferro (Resta-me a Sinceridade e a Saliva de todo o mundo)


***


O Tempo a cavalgar com Zaratrusta, trusta trusta,, a procurar um efeito sonoro nos seus versos: Em busca deste ou daquele recurso estilístico que dê profundidade à rima imperfeita – a Injectar no peito uma vontade nova, um Sol líquido entre dois seios que são também montanha, onde descansa o olhar –
vários olhos que vêm os estorninhos dançarem numa nuvem única, que parece uma cabeça de Medusa, em permanente mutação: Criando novas formas do cabelo, novas expressões no sorriso …………….. Uma nuvem única que faz amor consigo própria, como se fosse com um filho por cima dos Campos de Marte - uma nuvem-estorninho a acompanhar Grieg na subida e a acompanhar Grieg na descida: Nasceu uma Estrela com baton a mais –


A Torre de Babel, as torres do Aleixo
A torre latina que só espera,
a doçura do
teu queixo – À procura da T-mésis per-fei-ta
Um triângulo com as suas três pontas acesas, que bebe demais e tem medo de cair na entropia, um triângulo-cio com problemas de erecção.

É só doçura a torre latina que cai, Gémea do silêncio e da solidão;
A nossa língua não é esquecida: Evoluirá até à deformação perfeita –
O Tempo a acender todos os interruptores da Calábria, a fechar os olhos aos missionários que merecem o descanso: A dar-lhes um sentido porque todas as coisas devem ter sentido, seja ele único ou múltiplo: Seja ele cavalo, cidade-industrial, pastor alemão, vidro, sebenta, aguardente, erecção, uma viagem a Nova York, a Grécia Inteira; seja ele vento, microscópio, lixívia de marca branca, rebanho de ovelhas, medo do escuro, uma canção de amigo, uns olhos verdes e tristes – Seja ele, fazer obras num talho, mudar de instalações o sapateiro, o preço da gasolina, o preço do trigo, o que o colhe, ou o que o come…

***

Aqui não há espera: Come o teu queijo gordo e guarda que o teu lamento não seja eterno ………. Abre todas as janelas e deixa que o mar entre em tua casa – Nasceu do lodo, a simetria, a Vontade nova, em tudo nova; Não lhe quis dar um nome. Por superstição, deixei-a também flutuar como fumo de um cigarro que desaparece e é só instante. Deixei-o ir acordar os camionistas que seguem por estradas sem curvas, e precisam de dormir ……………………………… O que nos é estranho é adocicado e múltiplo, o que nos é estranho é o que Entra … Digo Entrar. Entrar Verdadeiramente::
Fomos alguém à janela com as suas pernas de cimento, fomos o pão negro que comia, um país na direcção do vento: O meu trabalho é partir diamante com a boca e encher de calmantes toda a Escócia e a gente austral. O meu país é só vento e aproxima o bem do mal: O meu país faz compotas de petróleo cristalizado, compotas de moral e de cimento que acordam os seus filhos pela manhã, compotas que indicam uma rota nova, que pedem boleia aos camionista, que têm medo de não passar bem a mensagem – É sua missão passá-la … Dizem - Bom dia! – A este e aquele que passa, que tiram o chapéu educadamente; Que abrem os seus corações aos estranhos nas estações de comboio. Compotas que desejam mesmo um bom dia, a este e aquele viajante e só esperam que a sua rota seja perfeita.







***

Espero que alguém se deite comigo, e não saiba já se está acordado ou a dormir e que a fronteira entre a vigília e o descanso seja só um novelo com que brinca um gato, em tudo exílio e olhos verdes, um gato negro que entra e sai das torres latinas. Um gato com o sonho Americano e a Dormir por si adentro.
Manter vivas todas as Frentes e velar para que nunca se apaguem – Calcar um triângulo de espera - gelatinoso como o cancro da mama - Um Triângulo que incomoda os séculos, um triângulo que minga quando as pessoas se abraçam: um triângulo que acorda e cavalga, um triângulo que sabe três línguas e assassina por trás. Um triângulo-Solidão.

***

Em métrica antiga abrimos todas as portas para que o rio passasse, negro e gorduroso no seu leito, a dizer que o país não se mete em sarilhos, em cada esquina um tétrico coro canta. Em cada esquina essa perda de cabelos dourados, wireless latino e agudo, entra em todos os jardins, come os teus figos maduros, Quê?
Com uma flor na lapela que é o seu lamento,
A criar estilos, a passear o cão, a ouvir o concelho de todos, a dançar regeton

O Tempo a ouvir Sitiados
A talhar a pedra - a ser já só pedra e dados
a construir sólidos telhados num labirinto guloso








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O Coro tétrico canta:

Tudo é febre e mudança
Panteão e virilha a arder,
Tudo é promessa líquida que muda,
e manequim a ferver

Tudo é perspectiva múltipla e
nos exige a atenção,
Tudo é língua, tudo boca ,
Ode como um cão!

Esculpe-me o cabelo, o sexo e o antebraço,
Recheia de chocolate os ouriços do mar, Dá-me a solução num único abraço,

Adoça e esculpe-me os limites: Faz deles, nenhum.

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Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto – Enche os Porões de riso e espasmo… Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora –

Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que há noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte, limite e União. Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço em tatuagem, nas costas em tatuagem, num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco – Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar - A literatura, só pode ser União …………… Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro (são precisos bons reflexos e ante-braço forte) – A Literatura tem de ser União –

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a “fome de gente” que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita – Para que os cegos a vejam multiforme a Afastar todas as nuvens carregadas – Para que a Fuga seja só ficar – Deserto a vestir as suas cuequitas com motivos ursinhos, a olhar para mim, espelho que não dorme porque abre todas as gavetas, todas as vontades para tirar de lá meias de licra – Sou só a vontade dos teus olhos. A Escócia a abrir trincheiras cor de rosa, África a sonhar com um incesto – Em tudo Maior –
A calçar as All-Stars - A jogar playstaition com a boca cheia de limão* Deserto a cavalgar a abrir portas – Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.

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Nunca quis ser um deserto, sempre quis ser um espelho ou um conjunto de limões _ Se fosse uma mulher, paria um espelho de espuma – Sei que a espera é o próprio Inferno, senão o Diabo Inteiro, sou o arquitecto de um labirinto:

Comer o labirinto
Sair
Ficar dentro – O Arquitecto é uma sombra e quer-se perder e espalhar pela praia ao fim da tarde, Criar a Sua Perda, um labirinto doce com muros que são folhas de gelatina, um arquitecto que só te quer a ti, todas as saídas e todas as entradas. A mais doce ária que é o azeite negro a escorrer pela boca de um paralítico. Esculpe-me o cabelo, o sexo, o antebraço, dá-me um abraço triplo, tira-me todo o ar, dá-me todo o Ar:
A noite com as suas cuequitas apertadas uiva por Maiakovsky
a língua da noite adormece os pescadores

………………………….Gosto de te ver sorrir …………………………………………




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O Riso é o Gerador Único do Universo,
só ele, quando, tudo o resto falha, permite que as estrelas,
(infanticidas por natureza), se mantenham vivas e não cortem as suas pontas,
Que as ligações frágeis, não percam vida e se extingam até à anorexia, perdendo luz e força,
ou se arrebentem por dentro sobre o seu próprio eixo desatinado (desatinando para aqui e para ali) Só o Riso é Deus, só ele cavalga e Molda verdadeiramente as caras,
só ele cria luz e espelhos de espuma, só ele goza a poesia, só ele fica sozinho, só ele dá vida.
Quem escreve “O Fim da História”, mais não faz do que a começar. Sou um recurso estilístico a olhar-se ao espelho, a beber chá verde pela manhã, a empapar o cabelo em gel …

Sou a vontade, em tudo malhada, de te ver sorrir*
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Lambi o sexo a um relâmpago de virilhas acesas
os seus pintelhos tornaram-me a boca da cor do azeite,
alguns engoli e escorri para os pulmões, vi o relâmpago a lavar os dentes e a cair por cima de uma biblioteca

a literatura (a primeira morte) só serve para unir – os fios que usa são dourados,
é também dourada a sua paciência e a sua vontade de conhecer o inferno.



Ode em mutação, poema recheado de vento, poema que cavalga e é lusitano - Que é só sede e é só vento, (vontade de rir de tudo) - Poema em rima cruzada a atravessar todos os rios, relâmpago a guiar numa auto-estrada em direcção ao sul – Poema a ouvir Belle Chase Hotel com a boca cheia de cerejas negras – Ode que canta um país que não quer amanhecer, e que é brisa e triste lamento, poema que é olhos teus e se alimenta de riso. Ode cão Ode cimento.

Sempre quis ser uma cidade industrial escocesa que Turner não conseguiu pintar, sempre quis ser o acordar dos operários, que calçam as suas ceroulas, afastam o medo (Criação Absoluta e único Motor de tudo) Todos os mails não enviados que recheiam a Rede de pontas gelatinosas e fazem explodir as estrelas – De tudo o que deve ser dito com o palato aceso.
Ode Gente, Ode canção
Ode lixívia que limpa uma campa
Ode-saia e alexandrina na rima, ode com dentes podres
viciada em cocaína – Ode Gente dentro de Gente, Ode cantina,

Ode canção, perfeita no gesto – Ode hospedeira da Easy jet, Ode-gente que chove, Ode-Nuvem que tapa e destapa as cidades Belgas, Ode a abrir os frascos de mel todos, a meter-te pirilampos nos cabelos, a acender de escuridão a noite – Ode que chora quando morre o seu amigo, Ode que brilha quando morre – O Mundo começou agora e já está na sua varanda de Susto uma rapariga com a sua saia carregada de vermelho – Ode Saída a encher os pulmões de relâmpagos - Um país Ocidental que nasceu numa paralítica dança em construção.

Ode tinta e mutação num copo de espasmos,

Ode de boca ao lado
O amor é como carne …

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

As estrelas suicídas de Tule

As estrelas Suicidas de Tule*

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You have to think in Casanova – “Belle Chase Hotel”




Foi com Maria Puig, o hermafrodita, que comecei a ouvir tango. Primeiro orquestras ligeiras, depois Gardel. Na altura, ela fazia a sua tese de mestrado sobre “Tristan Shandy”. Preparava também, em conjunto com um musicólogo e um fotógrafo, a obra “O Tango durante a Segunda Grande Guerra”. Era uma encomenda de um dos maiores grupos editoriais franceses.
No centro da sua sala havia um velho gramofone que tocava repetidamente a “Munequita de Paris”. Outras vezes “Nagasaki blues” de Mina.
Eu sentava-me no sofá e lia “What is the literature” do Sartre, ou uma revista sobre tatuagens. Ela ia mudar a agulha, eu continuava no sofá. Um dia vi no espelho do seu quarto de banho, uma frase curta, escrito a baton. Dizia só: “Um reich de leite” – A caligrafia pareceu-me sexy, e a sentença escrita muito devagar e com um pulso seguro. Não achei estranho a frase não ter verbo, não ser uma oração, mas apenas uma espécie de complemento incompleto: De quê? -Perguntei-lhe, ela sorriu e voltou a colocar a agulha no começo da música. Mostrou-me no mail algumas fotos que tinha recebido para ilustrar um dos capítulos da obra. Pessoas a dançarem em grandes salões europeus e americanos. Cadilacs com casais abraçados fora ou dentro dos carros.
Um Reich de leite?
O quê?
Como era o leite?
“ disse que era gordo”



Mostrou-me um texto seu, dividido em cinco partes. Explicou-me que fazia parte de um diário e que eu não mostrasse a ninguém:



1.Fizemos amor durante muito tempo: Eu, um homem ou uma mulher; e ela, uma mulher ou um homem. Os nossos sexos eram uma sugestão e pareciam uma corrente tropical. Não eram os orgasmos que levantavam a alma, mas o calor e a respiração – e a Munequita de Paris – no auge de um orgasmo múltiplo de uma estrela suicida com baton a mais. Éramos essa estrela reflectida no espelho barroco de um submarino .Levantei-me e abri a boneca russa, dentro estava outra boneca, abri a outra boneca, e abri outra e outra e todas as bonecas que estavam uma dentro das outras como memórias tripartidas. A última boneca abri com a boca e sei que isso o excitou. Dentro da boneca estava uma mortalha. A mortalha tinha escrito um poema de Walser. Era inédito, como qualquer acto humano. Ele enrolou nela um bocado de tabaco negro e ficou com atenção ao fumo. Disse duas ou três coisas sobre a perenidade, o gesto humano, não sei o quê sobre África. Foi até junto do gramofone e meteu a música do começo.

2. Imaginei um país neutro com todos os seus leiteiros a levarem as bilhas nos caminhos de terra. Os leiteiros a cantarem que – O seu país não se mete em confusões - Imaginei o país neutro com o seu povo trabalhador que semeia os campos de trigo e que colhe o trigo e do trigo faz farinha, e com farinha faz o pão que alimenta o povo. Dos operários aos ladrões, dos antiquários, aos guardas florestais, que protegem as reservas nacionais. Imaginei todas os seus bosques recheados de prostitutas. Imaginei-as a enrolar o preservativo no toalhete, num gesto de carinho. A passarem o toalhete no rabinho dos impotentes para que o seu orgasmo seja em tudo pujante e nacional.




3. Os funcionários internaram a rainha na ilha de Capri. Aí a rainha ouvia a “Munequita de Paris” e chorava cal viva. Uma lenda antiga dos pescadores napolitanos explicava melhor, que na impossibilidade da rainha chorar algo líquido, as estrelas-do-mar começaram a aparecer em grande quantidade, nas praias entre Herculano e Nápoles. De manhã todos encontravam as praias cheias de estrelas-do-mar. Noutras manhãs encontravam as praias cheias de soldados. O mesmo fenómeno se passava na Normandia.

4.Eram grupos de meninos e meninas que encontravam as estrelas-do-mar, e as, viravam ao contrário para lamber a parte branca e adocicada que era o seu choro: Um líqiquido espesso, como o sémen dos cavalos-marinhos. Um choro que parecia leite gordo e doce com muita nata, como o leite das baleias. As meninas metiam as pontas das estrelas nos ouvidos e ouviam as histórias da Rainha internada em Capri: Estávamos no início da guerra.



5. Era uma espécie de leite, mas não era bem leite, era segredo líquido e quente de uma rainha. O leite sabia também a outras histórias mal contadas. Porque as estrelas-do-mar sabiam muitas histórias sobre a emigração ilegal de África para as Canárias. Muitas vezes espreitavam a boca roxa, com os lábios grossos de um nigeriano inchado pela água, que se tinha deixado ir ao fundo. Sabem também boas histórias sobre a guerra que contam aos meninos que as descobrem pela manhã. Uma delas, é a de um capitão de um submarino francês que em 1940 desceu ao fundo do mar do Norte para uma missão de espionagem. Desligou o radar e forrou o tecto do submarino com papel celofane azul celeste. Colou nele muitas estrelinhas que picotou de uma cartolina dourada. Depois de forrado o tecto do submarino, o capitão pediu que lhe metessem no seu interior um espelho grande e barroco. Dois tripulantes trouxeram-no para o espaço central. Depois os dois tripulantes embebedaram-se, o capitão ajeitou a agulha do gramofone e começou a ouvir a “Munequita de Paris”. Morreu numa espécie de guerra privada. Todos esses segredos, tornavam o choro das estrelas mais espesso, gordo e saboroso, como se fosse leite condensado: memórias de guerra que as raparigas de Nápoles lambiam, ou usavam como gel no cabelo para seduzir, com o seu cabelo curto, um ou outro amigo de quem gostavam mais.




Nuno Brito

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A proximidade narrativa em “Sobre Gatos” de Beatriz Hierro Lopes

Este texto de Beatriz Hierro Lopes revela um batimento cardíaco próprio (felino e humano) repetido várias vezes sonoramente durante o conto. É o batimento cardíaco, o humano (em tudo felino) que se evidencia como o Grande Criador, aquilo que gera e que marca o tempo desta narrativa.
O efeito sonoro e térmico é muito suave mas insistente e de grande força “a lentidão da respiração humana em repouso; O compasso melancólico do coração vigilante; a densidade amorfa do sangue nocturno” – O registo é fluído, em tudo táctil salientado por uma pontuação muito querente e que engrandece o ritmo. O ponto e vírgula tanto serve para estabelecer uma continuidade balouçante, como uma quebra ligeira, sempre como um ritmo “hipnotizado pelo batimento cardíaco”. A pontuação é utilizada de forma muito inteligente.
O registo de Beatriz Hierro Lopes é em tudo equilibrado, mas inquieto. A força desta imagem é a do sublime, do mito: antigo, épico, mas rejuvenescido e recriado em tudo urbano: A frase é de uma intensidade muito bem conseguida: “Foi quando os gatos deixaram de se deitar com as mulheres que os homens se tornaram livres para o fazer”. A frase é doce e em tudo chama a atenção para alguns traços de Anais Nin, embora revitalizados e com um estilo mais aperfeiçoado. “Via-os idênticos na incapacidade”. Aqui a analepse permite dois caminhos, em tudo iguais. A incapacidade dos homens, a incapacidade dos felinos.
Um universo castrante, sensitivo e erótico está presente, mais pela ausência do recurso estilístico que é aqui um Recurso fundamental. Aqueles que “nunca seriam capazes de adormecer em silêncio”.
O narrador é em tudo muito próximo da personagem principal, e este é um traço muito próprio em Beatriz Hierro Lopes. Imagina-se um narrador confidente, um narrador que pode ser felino, um narrador neutro, que pode estar castrado. Um narrador que sabe quais as palavras que inundam os raciocínios da personagem principal. Palavras que se unem em “frases curtas e de significado labiríntico” – “Palavras pedra “ que a personagem evita. E aqui a metáfora é perfeita “pedras que não rolariam”. A personagem principal que dorme com o gato sobre o seu peito, é escritora, e procura criar uma nova linguagem “uma nova iconografia sustentada pela novidade de sons nunca antes ouvidos”. O conto possui assim elementos meta-literários e de reflexividade sobre o fenómeno da literatura “um estado transitório… de transgressão”. A personagem principal queria “narrar, descrever, pintar a soma da visão que retinha dos outros”. A memória é invocada e surgem imagens muito potentes na sua calma, tais como: “as amoras que tinham colhido e escondido num dos bolsos das calças em segredo, Como se não fossem amoras, mas antes algo de bem mais precioso: cornalinas selvagens com um tom idêntico ao do sangue”. O registo é extremamente humano, isto dito na versão última de evolução literária, o humano, o tangente, o tão perto e por isso difícil de descrever, é descrito de uma forma límpida ao ritmo da memória por um meta-narrador, ou meta narradora que se pensa e descreve a si próprio, ou algo muito próximo, como numa memória/ lago “oculto pelos nenúfares”.
O narrador ou um homem com os braços cruzados ao lado do porto delibera quais as memórias que devem passar. Como um polícia do pensamento, dizendo: “aqui está, voltamos a elas”. A imagem é muito forte, e de um carácter assente num não lugar – algo entre o consciente e o inconsciente, mas com traços bem reais e firmes: O solo que pisa o narrador, que pode ser um homem ou um gato, ou um animal hermafrodita ainda não catalogado. Um animal controlador do inconsciente a quem a personagem principal recorre/ invoca. Isto pode ser uma das várias leituras que se depreendem da analepse Extremamente bem construída por Beatriz Hierro Lopes, resultante de um estilo muito conseguido e seguro. A imagem persiste forte e sublime: “Crianças com os bolsos a transbordarem de pedras vermelhas”
As imagens são de uma grande força, utilizando o sublime através de uma hipérbole muito equilibrada. O narrador parece feito de memória e é invocado pela personagem principal, que adormece com o gato sobre o peito. Um gato com uma respiração “quase humana” que se parece com toda uma geração. A imagem de uma geração em cima do peito a adormecer, com o seu batimento quente “quase humano” é de uma força muito grande e mostra uma energia brilhante de alguém que tem Muito para dar *a Literatura Portuguesa.

domingo, 20 de dezembro de 2009

A escrita da estrela, o túnel

Ao fundo do túnel que era feito de cabelos loiros, distinguiu um espelho com uma frase a batôn, tentou aproximar-se e viu a sua cara com grandes manchas. Acordou.Eram três da manhã.

Foi até ao computador, abriu o gmail, só tinha um novo, dizia: URGENTE: Reencaminhe por favor este e-mail; por cada e-mail enviado este bebé queimado recebe 0,001 euros. Abriu todas as fotografias do bebé queimado. De nenhumas teve medo, parecia completamente queimado, mas já não parecia um bebé, mas uma rodilha com carne.
Enviou o mail para todos os seus contactos. Imaginou a rede a ficar repleta de mails do bebé queimado, mails que se cruzavam, várias pessoas os iam receber e enviar engordando uma informação de várias pontas, sempre em expansão até à mãe do bebé ter o dinheiro suficiente na sua conta para a operação do bebé em Cuba. Imaginou a conta a ficar recheada enquanto o e-mail em forma de estrela ia crescendo, engordando as suas pontas cada vez mais benignas e fluorescentes. Imaginou a estrela com as suas pontinhas a bater à porta dos camponeses. E os camponeses, do Cáucaso à Finlândia, a virem abrir as portas das suas casas. E as mulheres dos camponeses a perguntarem- Quem é a esta hora? - E os camponeses com as suas meias de lã grossa a abrirem a porta à estrela que, com todas as suas pontas, entra por todas as casas. Enfia-se em cada lugar da Rede. Espalha-se benigno. Uma estrela hiper-real, feita unicamente de solidariedade.

Ouvia o Adagietto da quinta sinfonia de Gustav Mahler, enquanto consultava vários sites com tatuagens; Guardava algumas das imagens numa pasta para depois escolher melhor. Tirou alguns contactos que gravou directamente no telemóvel.
Foi à beira da janela. Depois sentou-se à beira do computador e escreveu “A Estrela”. Começou também a escrever “O Viking e o menino autista”. Os dois contos ficavam completos no dia seguinte.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A Estrela

A Estrela*
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I.

O meu marido é soldador e chega tarde a casa. Quando chega já está a dar o telejornal. O meu marido chega e põe-se em frente à televisão da cozinha. Dá algumas palmadas no cão. Depois muda para o outro canal onde estão a dar as notícias do desporto e ele vê com atenção as notícias do Dínamo de Bucarest e vem sentar-se à mesa quando já está tudo frio.


II.

Nunca falta sopa lá em casa, porque o meu marido e os meus filhos graças a Deus, gostam muito de sopa, desde pequeno que o meu marido gostava, e os meus dois filhos são iguais. Desde pequenos que comem duas ou três tigelas e depois pedem mais. Por isso normalmente não comemos muito ao jantar. Às vezes são só umas sandes. Normalmente faço-lhes sopa de hortaliça sem passar muito, e feijão, ponho muito feijão na sopa e estrelas. Ponho uma massa de estrelas de que os meus filhos gostam. Antes fazia sopa de letras. Mas o meu marido queixou-se das letras e eu mudei de marca. Agora compro de uma marca branca, mais barata, mas ele gosta mais.
O meu marido trabalhou na Grécia dois anos antes de me conhecer e diz que na Grécia a massa de letras é com caracteres e que sabe melhor. Mas diz: Os gregos não punham as letras todas, porque ficava caro às fábricas fazer moldes para todas. Tinham que ser moldes muito pequeninos e era um investimento inicial muito grande, para aqueles que se decidiam a abrir uma fábrica de transformação de cereais. Eram uns pobres, depois uma mudança no destino, no rumo das estrelas e esses pobres diabos com um empréstimo ou outro lá iam criando as suas fábricas. Contava o meu marido. Na Grécia qualquer massa de letras só tinha o Alfa, o Beta e o Ómega, as letras mais populares, algumas marcas tinham também uns pontinhos, que faziam de ponto final. Mas a sopa era boa, dizia ele. A sopa dos russos também. O meu marido viveu um ano na Rússia, quando tinha 20 anos, trabalhou numa adega de um amigo que já estava lá há mais tempo. Dizia que a sopa dos caracteres russos também era boa. Esses punham os caracteres todos e por isso a sopa sabia melhor, porque ao paladar juntavam-se novas texturas, e os russos têm muitos caracteres e falam muito rápido.

III.

Agora ponho estrelas na sopa e ele não se queixa. Mas às vezes pega no pacote da massa quando estou a cozinhar e não diz nada, mas eu sei aquilo em que ele pensa. Um dos sócios da fábrica de transformação de cereais é o Serj: um antigo amigo nossa. Cresceu junto com o Óscar. Tinham sido colegas de escola e de seminário, e depois ainda na tropa. Percebo bem o meu marido, a sua expressão quando olha para a embalagem da massa de letras.
Quando saíram da tropa, o Óscar foi para a Rússia, primeiro como montador de pneus, depois a trabalhar numa adega. O Serj entrou numa empresa de construção civil e passava a vida no sul a fazer ginásios e estádios. Passado pouco tempo casou-se e foi viver para Bucareste. Dividia com outro homem um táxi, fazia o turno da noite e o outro fazia o de dia. O negócio começou-lhes a correr bem e compraram outro táxi, passado algum tempo tinham seis táxis novos e bons e alguns motoristas a trabalhar para eles. Ele continuava a conduzir um dos táxis da noite. Compraram mais alguns carros. Nessa altura a Anna tinha acabado de nascer e no baptizado dela, ele disse ao meu marido que tinha levado o Emil Cioran à praia. Disse-lhe que o apanhou em frente a um hotel a fazer sinal para o táxi parar e que queria ir a Constanta.


IV.

- Ia muito calado. Eu ia falando para passar o tempo. Ele pediu-me um cigarro porque a essa hora já estavam todos os sítios fechados e seguimos até ao Mar negro. Ia embalado com a música e adormeceu. Depois foi tirando uns apontamentos para um bloco preto. E eu disse que era uma grande honra levá-lo à praia. Ele saiu do táxi e foi até à beira mar. Tirou os sapatos e molhou os pés. A água devia estar muito fria. Eu fiquei ao lado do táxi a olhar para ele. Parecia o homem mais triste do mundo. Depois voltou e pediu que o levasse a um apartamento de um amigo, deixei-o lá.


V.

Juntaram-se depois com outro sócio, e os três criaram uma empresa de camionagem. Compraram dois autocarros usados. No início faziam só duas linhas regionais, que traziam as trabalhadoras dos arredores de Reslta para o centro da cidade. Mulheres que vinham às 6 e meia da manhã para as fábricas de calçado. Ao fim da tarde as camionetas também vinham cheias para as trazerem a casa.
Fizeram depois um acordo com a câmara da cidade para levar crianças dos arredores para as escolas mais próximas e por isso tiveram que comprar mais camionetas. Em pouco tempo cobriam mais linhas e tinham uma frota de sete camionetas, uma delas com ar condicionado para as viagens para Deva.


VI.

Depois ele vendeu a parte dele. Era na altura muito amigo de um empresário de Arad e decidiram criar a fábrica de transformação de cereais. Era uma fábrica pequena nos arredores da cidade, tinha 40 empregados. O negócio ia correndo bem, ia dando para aguentar as despesas com o pessoal e os fornecedores. Os clientes eram armazéns de retalho no Oeste. Para sul havia as grandes fábricas de transformação de cereais que exportavam para a Bulgária e para a Sérvia. Com essas não podiam competir. Os produtos da empresa só estavam numa mercearia ou noutra, todas muito afastadas umas das outras. Mas a carteira de clientes era boa e o negócio não era arriscado.



*



VII.

Pouco tempo depois de ter criado a empresa, comprou uma casa, perto da nossa; Vinha cá algumas vezes ao ano com a mulher e a filha, a Simona que nasceu mais ao menos ao mesmo tempo da nossa Anna. No início O Serdj não vinha muito aqui porque a empresa ainda lhe dava muito trabalho, mas depois passou a vir mais e no verão costumavam ficar aqui cerca de 3 semanas. Às vezes tinha que ir mais cedo embora, mas a mulher e a filha ficavam mais uma semana ou duas e depois iam lá ter. A filha, a Simona dava-se bem com a Anna, brincavam juntas aqui em casa, ou iam até à biblioteca ou ao parque. Só lhes pedia para virem antes de ficar escuro.

VIII.

A Anna andava no ballett aqui e Simona andava no ballett em Arad. Fechavam-se no quarto e punham-se a dançar. O Óscar tinha-lhe comprado uma aparelhagem de música nos anos dela e os tios davam-lhe cd’s de compilações. Punham a música alta e ficavam a dançar. Os gémeos ainda eram pequeninos. Às vezes um deles entrava, ou entravam os dois, e elas punham-nos fora, ou punham-se a fazer-lhes penteados e a pôr totós nos gémeos e riam-se e ficavam todos a dançar muito inocentes. A Anna pegava numa caneta e fazia de conta que era um microfone e cantava por cima das músicas, em frente a espelho. Saltava as palavras do inglês que não percebia. Os gémeos saltavam em cima da cama. Às vezes entrava lá o cão. Outras vezes eu ia lá pôr ordem e meter-lhes a música mais baixo. A Simonna era um bocado mais alta do que a Anna. Entretanto a Simona e a Anna entraram para o ciclo e continuaram amigas. Só se viam no Verão quando o Serj voltava. Íamos falando pelo telefone durante o inverno e sabíamos as novidades deles e eles sabiam as nossas, a vida do dia a dia. O crescimento da Anna e o crescimento da Simona.
A Simona era boa aluna, tirava muito boas notas, a Anna também era boa aluna, mas a Anna estudava pouco por isso tirava notas mais baixas, mas o suficiente para passar, era responsável e isso chegava-nos. A Anna gostava mais de ler novelas, contos ou romances, que o Óscar lhe comprava quando tinha de ir à cidade. Novelas de autores romenos e búlgaros muito populares, ou então da Ennid Blinton. Mas a Anna ia à biblioteca procurar outros livros de que gostava mais e ficava a ler. Eu não posso ler muito por causa dos olhos, mas a Anna lia muito.



VIII.

Outro dia entrei no quarto dela, que nunca foi arrumado. Ficou como estava depois de ela morrer. Só fiz a cama. Mas não mudei a roupa da cama. E também não arrumei a secretária nem arrumei a mesinha de cabeceira que está com um livro do Cioran em cima, com uma marca na página 30. Diga o que disser o escritor, foram as últimas frases que a minha filha leu. Por isso eram frases verdadeiras, certas, porque a minha filha morreu em paz. Outro dia vi qualquer coisa no jornal que o Óscar deixou em cima da mesa da cozinha. Tinha um artigo sobre Cioran. O Serj uma vez, levou O Cioran à praia, já lhe tinha dito? As coisas correram bem ao Serj. Teve uma filha que era muito estudiosa. Mas perdi o fio à meada. Eu falava que andavam as duas no liceu. E aí o Serj começou a vir menos vezes aqui. Ele ainda vinha algumas, mas muitas vezes sozinho e por pouco tempo, porque a Simona já não gostava tanto de vir aqui. Gostava de estar com a Anna, e falavam muito ao telefone. Mas a Simona, sabe as idades. A Simona tinha lá o seu grupo de amigos, e se calhar o seu namorado. A Anna tinha aqui o seu grupo de amigos e o seu namorado. A Simona já não gostava de sair da cidade. A cidade é animada no verão, é quando estão de férias, tem de se aproveitar a idade. O Serj vinha. Mas poucas vezes; Não é bom para um homem andar sozinho.



*


A Simona dançava muito bem. Uma vez fomos a Arad vê-la dançar. A uma academia numa festa de Natal da escola onde ela andava. No fim fomos jantar todos à Pizza Hut de um centro comercial do centro. Ficamos duas noites em casa do Serj, era o fim-de-semana antes do Natal. Os gémeos estavam já no ciclo. Trocámos as prendas no restaurante. A Simone dançava muito bem e cantava muito bem.


*


Mas a Anna dançava… Como dizer… A Anna Dançava… É engraçado…
Veja, tenho-a na carteira: Esta é a Anna quando tinha 6 anos. Foi tirada na cozinha de nossa casa. Eu disse ao Óscar para me deixar arrumar a vassoura primeiro. Para que a vassoura não aparecesse na fotografia. Antes dele chegar, a Ana estava a dançar na cozinha com o cão à volta dela aos saltos. A televisão estava ligada num programa da manhã e passava uma música animada de uma banda brasileira em digressão na Roménia. A Ana dançava com uma tshirt que o Óscar lhe tinha trazido de Bucareste. Uma tshirt com uma girafa estampada, a girafa só tinha duas patas e uma bola de futebol ao lado. Tinha uns calções curtos à jogador de futebol dos anos 70, uma gravata cor-de-rosa e uns óculos de sol. A Anna gostava muito dessa tshirt e dormia com ela. Naquele dia de manhã tinha acabado de acordar. Eu tinha-lhe aquecido o leite com chocolate que estava em cima da mesa já frio. O Óscar chegou a casa, com uma máquina fotográfica. Passou por casa só para apanhar umas coisas de que se tinha esquecido e experimentar a máquina. Tinha-a comprado em segunda mão a um cliente que passou pela empresa.
Tirou várias fotografias. Vê aqui esta… Quando chegou à noite já vinha com elas todas reveladas. Sentou a Anna no colo e mostrou-lhe. Disse: Quem é esta menina que eu precisava mais de ver, do que o Moisés precisava de um mar para separar?
Dizia-lhe sempre isso. E a Ana dizia que não tinha sido o Moisés, porque um tio já lhe tinha dito. E ele voltava a repetir e a dar-lhe beijos.
Às vezes à noite ia-se despedir dela ao quarto. Dava-lhe um beijo na testa. Depois contava-lhe uma história que inventava. Uma vez espreitei e ouvi o Óscar a contar-lhe a história do Pastor. Ela adormeceu a meio, mas ele continuou até ao fim:

: História do pastor


Havia um pastor que tinha um rebanho de cem ovelhas e queria pô-las a pastar num prado, mas o prado ficava do outro lado do mar. Então apareceu Moisés e disse, eu parto o mar em dois, e tu as tuas ovelhas passam pelo meio. O pastor agradeceu. Mas Moisés mudou de ideias e disse: Afinal, só deixo passar um de vocês dois, por isso escolhe, ou passas tu, ou passam as ovelhas todas. O pastor disse: Então Moisés que passem as ovelhas todas, porque elas precisam de ir pastar e eu posso ficar aqui a dormir porque depois ainda me espera uma longa viagem de regresso. Moisés abriu então o mar para as ovelhas passarem. Depois de passarem todas, o pastor pôs-se a dormir na praia, mas passado pouco tempo Moisés acordou-o e disse: Pastor, tenho fome, quero comer sandes de queijo de ovelha. Tenho aqui pão, mas falta-me o queijo de ovelha. Eu abro-te o mar, e tu vais buscar as ovelhas, e recolhes o leite de uma delas para fazer queijo e trazes-me para pôr no pão. O Pastor aceitou, e Moisés voltou a abrir o mar. Quando Moisés chegou ao outro lado não encontrou as ovelhas, só encontrou um homem que lhe disse: Eu sei onde estão as tuas ovelhas pastor, mas só tas dou se matares o Moisés, é que ele está sempre a abrir e a fechar o mar, e por isso eu tenho que matá-lo, mas é melhor que não seja eu, porque se eu o fizer, fico com as culpas e posso ser julgado por isso. Assim, eu dou-te esta pedra e tu vais lá e atiras-lha, e depois eu devolvo-te as ovelhas. – O Pastor ficou desorientado, mas aceitou, pegou na pedra e foi ter com Moisés que perguntou se ele já trazia o queijo de ovelha, o pastor atirou-lhe com a pedra à cabeça e Moisés caiu. O Mar tinha ficado aberto, e o pastor voltou para trás para apanhar as ovelhas. O homem estava à sua espera, agradeceu que ele tivesse atirado a pedra a Moisés, mas disse: Agora pastor, vou ter de ficar com uma comissão de 40% por ter ficado este tempo todo a olhar pelas tuas ovelhas. E perguntou o pastor: Quanto é que é 40% das minhas ovelhas? – O homem disse – Tu tens 100 ovelhas, por isso 40% do teu rebanho, são 40 ovelhas para mim. O Pastor deu-lhe então 40 ovelhas, e ficou só com 60. Voltou outra vez para trás com as suas 60 ovelhas. Foi então que, atravessando o caminho que Moisés criou, encontrou uma estrela-do-mar e guardou-a no bolso. Mas entretanto Moisés acordou, porque tinha estado só a fingir que estava morto e disse-lhe – Com que então pastor, para além de não me teres trazido o queijo de ovelha, ainda me tentaste matar, e eu que tanto te ajudei ao abrir o mar em dois para tu passares. Então Moisés prendeu o pastor e as ovelhas numa jangada e pediu a Eólo, o deus dos ventos que lançasse uma tempestade sobre o barquito e que eles fossem lançados à sorte dos deuses. Então Eolo lançou ventos fortes que criaram ondas gigantes sobre o mar e o barquito quase ia ao fundo. Ficaram vários dias à deriva no alto mar até que o pastor se lembrou de rezar à estrela-do-mar, e pedir-lhe muita sorte.

A estrela-do-mar ajudou-o e indicou-o caminho da Irlanda, que era o sítio mais seguro. O barco chegou são e salvo a uma praia da Irlanda, onde há muitos pastos relvados, e o pastor soltou aí as suas ovelhas.

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IX.

Nessa altura a Anna já estava na Academia de Ballett, e em dois anos tornou-se a mais talentosa do grupo. A professora e o director da Academia um dia falaram com o Óscar e disseram-lhe que seria bom levá-la para Bucareste a algumas aulas da Academia de Bailado Clássico Nacional. Uma das melhores Academias de Dança Europeias. Disse que ela quase de certeza seria admitida com uma carta de recomendação, porque tinha muito talento. Mas isso implicava muitas perdas; Também muitos ganhos. Eu e Óscar falamos disso durante muito tempo. Sobre a Anna ir para Bucareste. Abandonar a escola aqui. Irmos todos viver para Bucareste. Mas e os gémeos. E começar tudo? A Academia em Bucareste tinha também escola que a Anna poderia frequentar. O Óscar dizia: A minha menina vai ser uma Estrela. Foi a decisão de que mais me arrependi. O meu marido de vez em quando fala nisso. Decidimos que se veria no fim da escola primária. A Professora achou sensato, porque a decisão implicava também muitos riscos e estávamos com pouco dinheiro.

A Simona dançava bem, mas não tinha tanto talento e quando entrou no ciclo desistiu da dança.

Mas há algum tempo a Simona conheceu alguns músicos, A Simona canta bem. Criou um projecto a solo. Começaram a dar vários concertos. Um produtor de espectáculos abriu-lhe os caminhos da televisão e a Simone começou a aparecer em todos os programas da Manhã, nos serões da noite, nas emissões especiais. Hoje, as suas digressões são muitas. Ela é bonita, canta bem, alguém lhe escreve as letras e já lançou quatro álbuns: Sim estou a falar da Simona que apresenta agora um concurso para cantores. Essa mesma, minha senhora. A mulher que aparece em mais capas de revistas no nosso país. Sim, é essa Simone.


A Estrela*


Nos últimos tempos a Anna queixava-se que lhe doía muito a cabeça. Por telefone, ligava e dizia que lhe doía e que estava com dificuldades em concentrar-se nas aulas. Disse-lhe para tomar vitaminas e que me explicasse melhor que tipo de dores eram. Estava em Bucareste no último ano de Biologia. Vivia num apartamento, que dividia com duas raparigas. Não disse ao Óscar para não o preocupar. Ele andava com muito trabalho. Tinham recebido uma grande encomenda do principal fornecedor, a ser entregue em Janeiro. Os soldadores iam ser os que tinham que se apressar mais.
Telefonei à Anna um dia pela manhã para o telemóvel mas ninguém atendeu. Liguei várias vezes. Depois ela ligou-me, disse que estava em aulas e estava com o telemóvel em silêncio. Perguntei-lhe se estava melhor. Disse que não. No início pensei que pudesse ser sistema nervoso, estava a acabar a primeira semana de Dezembro. Aproximavam-se os exames e para além disso tinha dois trabalhos de grupo que tinha que entregar antes do dia 20. Mas fiquei preocupada. Telefonei para a empresa e mandei chamar o Óscar. Ele atendeu. Disse que tínhamos de ir a Bucareste buscar a Anna porque ela não se sentia muito bem. Ele veio passado pouco tempo. Estava nervoso. Expliquei-lhe pelo caminho. A Anna tinha desmaiado na noite anterior e ainda não tinha ido ao médico.

Telefonei à Anna pelo caminho, disse-lhe para ela não sair de casa. Quando chegamos ela estava a dormir no quarto, uma das colegas delas levou-nos lá. Acendemos as luzes e chamámo-la. Ela acordou. Disse que estava tonta. Levantou-se, tinha pouco equilíbrio. Fomos ao Hospital Universitário. O Óscar ia a conduzir muito depressa. Uma das amigas dela veio também. Estava preocupada. Foram muito rápidos a atender-nos. Fizeram exames na mesma noite. Eu estava na sala de espera com a amiga da Anna e íamos falando. A sala estava cheia. O Óscar estava sempre a vir cá fora fumar. Telefonou para o director da empresa e disse que ia ter de ficar mais uns dias em Bucareste. A Anna ia ficar internada. A amiga disse para ficarmos lá em casa e dormimos no quarto da Anna esses dias. Um dia de manhã, o médico, que era muito simpático falou-me do tumor. Um tumor cerebral, maligno e galopante. Um tumor em forma de estrela. As minhas irmãs e a minha mãe vieram para Bucareste. Trouxeram os gémeos. Passado três dias, o médico disse que não valia a pena ser operada. O melhor seria vir para casa, onde poderia ficar mais à vontade e estar em família. Voltamos para casa e foi o último Natal da Anna.

X.

Passamos ainda juntos o Ano Novo, mas no início de Janeiro começou a piorar muito rápidamente. Perdia cada vez mais o equilíbrio. Estava cada vez mais tonta. Não tinha dores, mas a medicação que as tirava deixava-a desorientada, com muitos lapsos de memória. A casa estava sempre cheia de visitas, familiares e amigos. A minha filha perdia cada vez mais o equilíbrio. E o Óscar andava cada vez mais à deriva, e os gémeos andavam cada vez mais à deriva e o cão também andava à deriva.

Então sonhei a morte. Uma morte europeia e travesti, com uns boxers apertados e às riscas. Nunca esquecerei o seu cheiro. Carrego-o todos os dias por baixo da língua como uma bola de algodão. Veio buscar a Ana. Com os seus boxers às riscas. Nunca vi figura mais ridícula. Acho que me ri dela no sonho, parecia uma personagem de uma novela negra japonesa, mas com menos classe:

Não percebi se era um homem ou uma mulher, parecia um relâmpago preso dentro de um casaco verde da Prada, um relâmpago reprimido, mas ainda assim colossal , com as suas virilhas acesas, muito controlado, como uma dama aflita prestes a perder a controlo. Um relâmpago de saltos altos, muito compridos, pronto para explodir num orgasmo de luz e som, num Big-Bang desorientado. Mas que se controla e só explode para dentro, cada vez mais para dentro, muito educadamente minga até um estado inofensivo. Até ser um relâmpago-menino. O casaco verde ficava-lhe extremamente sexy a essa morte branca e láctea, como uma Puma feita de nata que, num voo muito elegante se atirou à minha cara: Um país a ambicionar o esquecimento.



Uma manhã a Anna ainda dormia e fui à cozinha preparar-lhe torradas, adivinhando que ela já não deveria demorar muito a acordar. Depois fui ao quarto dela e deixei lá o prato. O livro do Cioran estava aberto. Ajeitei a marca e fechei-o. Deu-me um quase ataque de pânico que se parecia um rio. Mas controlei-me e não comecei a chorar. Vim cá para a porta de casa e aí explodi, um choro logo controlado e reprimido. Depois um sorriso, porque podiam aparecer os meninos que deviam estar quase a acordar, coitadinhos, a imagem dos dois a dormir quase me fez outra vez explodir. - Não chora – Disse para mim como se fosse uma criança, repeti as frases em pensamento várias vezes, mas com vozes interiores diferentes, sem dizer nada, imaginei muitas vozes cómicas a dizerem-na: Não chora, um antigo colega de escola a dançar um twist muito divertido e com uma panela na cabeça, a dizer a frase, e depois ri-me, e não conseguia parar de rir. E passou uma mota em frente a casa, e o homem com o seu capacete ridículo ficou a olhar para mim e eu tive vergonha. Depois ri-me ainda mais do capacete dele e imaginei-o a dançar. O meu riso era já uma ameaça profunda e tive medo de ficar preso a ele, atrelada à loucura, atrelada à mota do homem do capacete ridícula e ser arrastada pela estrada até ao Mar Morto: E lá o homem da mota estacionar ao lado de Cioran que escreve em cima de um banco no seu caderno preto, o esboço do livro que a minha filha está ler; Lembrei-me dos meninos, fui lavar a cara muito rápido, sem me olhar ao espelho. Entrei no quarto. Estavam a dormir. Fui ao meu quarto ver o Óscar. Estava a dormir, parecia uma criança. Beijei-lhe a testa. Fui à sala o cão estava a dormir mas a ter pesadelos profundos e soluçava como se fosse ter um ataque. Meti-lhe a mão no pelo e acordei-o devagar, ele levantou o focinho, acalmou-se e voltou a dormir. Depois vesti-me para ir comprar cigarros ao Óscar, porque ele estava sem tabaco, trouxe-lhe também o jornal.



*

Peço desculpa pela obsessão minha amiga, mas há muito tempo que não falava com ninguém * No quarto rezei a São Longuinho e fiquei a olhar para a Anna. Rezei também a Santa Cecília e só pedi que fosse sem sofrimento a partida. Vi duas joaninhas, no parapeito da janela a subirem para umas flores muito bonitas, que uns amigos tinham trazido para a minha filha. As joaninhas subiram até às pétalas e voaram pelo quarto até à testa da Anna. Pousaram na sua testa e depois desceram devagarinho com as suas patitas como se mancassem felizes, em direcção aos olhos da Anna, pousaram na parte de cima das pálpebras e depois levantaram voo e saíram pela janela.

Alguns dias depois, como num milagre medieval, sonhei, que uma Nossa Senhora muito bonita me chamava, levantei-me da cama e fui ter com ela, os seus braços não eram de carne, mas sim de relâmpago. Também a sua auréola era um relâmpago vivo e circular, como que trabalhado durante anos por Volcano e Júpiter, era o mais perfeito círculo que havia visto. A Nossa Senhora trazia um vestido lindo e toda relâmpago abriu os seus braços. Senti-me muito atraída, como se já não fosse mulher, mas sim um homem, tinha um desejo incontrolável de possuir aquela mulher tão linda. Foi isso que fiz no sonho, abraçamo-nos e deitamo-nos na cama da Anna, e fizemos amor durante muito tempo. O sonho foi lindo. Lembro-me que o relâmpago era cada vez mais brilhante e sincero, vestia também ele o casaco verde da Prada, e não o manto branco com que me chamou. Nossa Senhora dos Relâmpagos estava cada vez mais bela…
Levou-me pela mão até à Anna.

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Nunca gostei de estrelas, quando me lembro de estrelas, penso em chaves de estrelas e no Óscar a mudar o pneu do carro. Penso numa faca que tenho para cortar piza, que também é em forma de estrela, penso nas estrelas de Natal, e penso nos gémeos que birram todos os Natais, porque querem os dois pôr a estrela no cimo da árvore. Pego nos dois e põem os dois a estrela. Penso nas estrelas-do-mar que a Anna nunca viu, porque o Mar Negro é muito salgado e as estrelas-do-mar dão-se mal na água muito salgada: Preferem-na mais límpida, clara e doce. Penso também em estrelas de música, como a Simona, penso em estrelas de futebol, como o Dan Petrescu. Penso na relação que elas podem ter com a gente a sério, porque as estrelas só existem e brilham na relação que têm com as pessoas.
Mete-me nojo ver homens a olhar para as estrelas, imaginar o que é que esses pobres diabos podem estar a pensar. Rober Diaz descreve-os como “pedófilos a olhar para o crepúsculo”.



Acabei por ler finalmente o livro de Emil Cioran. Despertou-me a atenção a frase:
O momento em que pensamos ter compreendido tudo, dá-nos ar de assassinos – A frase estava sublinhada pela Anna, num traço forte e seguro, de confirmação. Ao lado numa das margens a Ana escreveu estas duas frases:



- O momento em que pensamos ter compreendido tudo é ridículo -
- Compreender tudo é ridículo -








Nuno Brito, 2009