quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A proximidade narrativa em “Sobre Gatos” de Beatriz Hierro Lopes

Este texto de Beatriz Hierro Lopes revela um batimento cardíaco próprio (felino e humano) repetido várias vezes sonoramente durante o conto. É o batimento cardíaco, o humano (em tudo felino) que se evidencia como o Grande Criador, aquilo que gera e que marca o tempo desta narrativa.
O efeito sonoro e térmico é muito suave mas insistente e de grande força “a lentidão da respiração humana em repouso; O compasso melancólico do coração vigilante; a densidade amorfa do sangue nocturno” – O registo é fluído, em tudo táctil salientado por uma pontuação muito querente e que engrandece o ritmo. O ponto e vírgula tanto serve para estabelecer uma continuidade balouçante, como uma quebra ligeira, sempre como um ritmo “hipnotizado pelo batimento cardíaco”. A pontuação é utilizada de forma muito inteligente.
O registo de Beatriz Hierro Lopes é em tudo equilibrado, mas inquieto. A força desta imagem é a do sublime, do mito: antigo, épico, mas rejuvenescido e recriado em tudo urbano: A frase é de uma intensidade muito bem conseguida: “Foi quando os gatos deixaram de se deitar com as mulheres que os homens se tornaram livres para o fazer”. A frase é doce e em tudo chama a atenção para alguns traços de Anais Nin, embora revitalizados e com um estilo mais aperfeiçoado. “Via-os idênticos na incapacidade”. Aqui a analepse permite dois caminhos, em tudo iguais. A incapacidade dos homens, a incapacidade dos felinos.
Um universo castrante, sensitivo e erótico está presente, mais pela ausência do recurso estilístico que é aqui um Recurso fundamental. Aqueles que “nunca seriam capazes de adormecer em silêncio”.
O narrador é em tudo muito próximo da personagem principal, e este é um traço muito próprio em Beatriz Hierro Lopes. Imagina-se um narrador confidente, um narrador que pode ser felino, um narrador neutro, que pode estar castrado. Um narrador que sabe quais as palavras que inundam os raciocínios da personagem principal. Palavras que se unem em “frases curtas e de significado labiríntico” – “Palavras pedra “ que a personagem evita. E aqui a metáfora é perfeita “pedras que não rolariam”. A personagem principal que dorme com o gato sobre o seu peito, é escritora, e procura criar uma nova linguagem “uma nova iconografia sustentada pela novidade de sons nunca antes ouvidos”. O conto possui assim elementos meta-literários e de reflexividade sobre o fenómeno da literatura “um estado transitório… de transgressão”. A personagem principal queria “narrar, descrever, pintar a soma da visão que retinha dos outros”. A memória é invocada e surgem imagens muito potentes na sua calma, tais como: “as amoras que tinham colhido e escondido num dos bolsos das calças em segredo, Como se não fossem amoras, mas antes algo de bem mais precioso: cornalinas selvagens com um tom idêntico ao do sangue”. O registo é extremamente humano, isto dito na versão última de evolução literária, o humano, o tangente, o tão perto e por isso difícil de descrever, é descrito de uma forma límpida ao ritmo da memória por um meta-narrador, ou meta narradora que se pensa e descreve a si próprio, ou algo muito próximo, como numa memória/ lago “oculto pelos nenúfares”.
O narrador ou um homem com os braços cruzados ao lado do porto delibera quais as memórias que devem passar. Como um polícia do pensamento, dizendo: “aqui está, voltamos a elas”. A imagem é muito forte, e de um carácter assente num não lugar – algo entre o consciente e o inconsciente, mas com traços bem reais e firmes: O solo que pisa o narrador, que pode ser um homem ou um gato, ou um animal hermafrodita ainda não catalogado. Um animal controlador do inconsciente a quem a personagem principal recorre/ invoca. Isto pode ser uma das várias leituras que se depreendem da analepse Extremamente bem construída por Beatriz Hierro Lopes, resultante de um estilo muito conseguido e seguro. A imagem persiste forte e sublime: “Crianças com os bolsos a transbordarem de pedras vermelhas”
As imagens são de uma grande força, utilizando o sublime através de uma hipérbole muito equilibrada. O narrador parece feito de memória e é invocado pela personagem principal, que adormece com o gato sobre o peito. Um gato com uma respiração “quase humana” que se parece com toda uma geração. A imagem de uma geração em cima do peito a adormecer, com o seu batimento quente “quase humano” é de uma força muito grande e mostra uma energia brilhante de alguém que tem Muito para dar *a Literatura Portuguesa.

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