segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Quarta transcrição

Pensou ter acabado de assistir a Sunset Boulevard e a Mama Roma, guardando na memória, as imagens fortes que o ecrã LCD transmitia.
Notou, sem que o proprietário o avisasse que não estava na Casa del Cinema, mas numa loja rara e não era para um ecrã que olhava, mas para um aquário com motivos barrocos. Com pequeninas esculturas de Neptuno e ninfas que os peixes riscados contornavam para passar o tempo, escondendo-se atrás do corpo de uma seria de pedra, passando entre as pernas de Neptuno ou de um D. Quixote de pernas compridas e douradas que decorava o fundo aquário. Havia também algumas pontes, o proprietário era coleccionador de coisas que ligam. As pontes em miniatura não ligavam nada, porque estavam no findo do aquário, serviam para alguns pequenos peixes eléctricos descansaram nos tabuleiros inferiores. Réplicas em miniatura da ponte de São Francisco, pontes de Hamburgo, de Paris, muitas de Eiffel. Havia também um Ferrari pequenino já a ficar oxidado e a perder a cor vermelha. Havia também uma réplica do Palácio dos Reis de Granada – Os peixes eléctricos entravam no Alhambra ou no Palácio de Carlos V e descansavam de barriga para o ar nos claustros internos. Uma réplica também das torres gémeas, habitação de um tubarão martelo e pequeninas medusas japonesas que, ao dormirem no seu interior, iluminavam todas as janelas de uma carga eléctrica fortíssima – Havia uma miniatura de um dos reactores de Chernobyl e um castelo de Neuchvenstein marinho, protegido por dois sátiros de sílex. Era como se o proprietário quisesse reproduzir toda a História da Humanidade mas debaixo do mar. Pequenas estátuas de actores de cinema mudo ou de actrizes famosas da Brodway decoravam o fundo de um ou outro aquário. Num deles, a recriação com soldadinhos de plástico de uma batalha do Vietname, com os bonecos caídos ou levantados, as mulheres segurando os filhos contra o peito de plástico – Os muros caídos com pequenas anémonas em cima –O proprietário tinha um acordo com alguns artistas plásticos, encomendava-lhes em gesso ou plástico, (dependendo se era para aquário de água quente ou aquário de água fria)a recriação de uma batalha, de um acontecimento épico – Um episódio da guerra de Tróia, onde se via a fuga de Eneias decorava um outro. Noutro maior, a recriação mitificada de uma aparição mariana e da entrada das tropas aliadas em Berlim, com o seu muro de espelho a reflectir os peixes que por isso se aproximavam, temendo o inimigo.
. O proprietário grisalho notando o seu interesse no aquário e no cinema novo, introduziu-o no mundo subaquático:
A conversa foi longa em galerias da parte de trás da loja: Com grande variedade de espécies. Saiu e telefonou-me. Contou-me por alto a história dos filmes – Tudo depende das perspectivas – Disse-lhe. Está na altura de voltar ao Porto e acabar a sétima parte de “A Estrela” –Um de nós, deve concluir essa ponta que une todas as outras.




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Foi então que o proprietário, sem cair na entropia de misturar várias histórias, lhe contou no fundo das galerias onde imperava um grande aquário decorado com a réplica de um castelo búlgaro de formas estranhas, algumas histórias sobre o suicídio no mundo animal – Não se conhece o suicídio na vida marinha – Disse, como se fosse um aviador marinho – Há três animais, que o fazem – O escorpião, os pequenos helicópteros, (insectos voadores), e os homens (que o praticam de forma mais variada e aleatória). O escorpião, em caso de fogo ou de perigo de morte espeta o ferrão na sua própria carcaça negra, com força – Aqui o proprietário estremeceu como um peixe sem espinha que se via em aflição, encurralado num buraco de uma rocha por um polvo de grandes tentáculos – Riu-se e fez uma expressão engraçada,, que manteve acesa, para que a história não se tornasse muito tétrica – Contou-me uma história da infância, quando passava os verões no campo, em casa dos avós – Com os primos costumava caçar escorpiões – Depois faziam um círculo de gasolina em volta do escorpião, muito rápido acendiam o círculo com um fósforo e desenhava-se no chão um círculo de fogo que rodeava o escorpião, que dançava assustado, até à decisão de espetar o ferrão. Os primos olhavam com os olhos bem abertos – Tinham acabado de levar ao suicídio um animal perigoso, cujo veneno pode matar os outros ou a si próprio.

Sobre o segundo animal suicida, foi mais breve – os helicópteros: Contou-me como eles, em situação de perigo, chocavam uns contra os outros praticando uma espécie de suicídio duplo em situações de perigo, como grandes incêndios ou tornados, um suicídio colectivo e binário, feito aos pares – Contava-se no País Vasco que da colisão entre dois helicópteros podia nascer uma espécie de faísca, pelo embate forte e aéreo – Essa faísca caía sobre a terra, antes dos dois insectos já mortos, e essa faísca servia de semente – E no local do suicídio aéreo, nascia na terra um girassol. Daí um suicídio que dá vida – Como de uma forma ou outra o suicídio de um escorpião enche de vida a casa da avó, com os primos e primas a correrem excitados.


Antes de prosseguir com a história do suicídio no homem, o mais complexo e múltiplo, contou-me três histórias sobre o incesto na vida marinha, e como acreditava que a sua avó continuava a lavar a louça agora no fundo mar, onde é mais fácil de o fazer, na água quente das Bermudas – A sua avó e muitas outras a ouvirem a música dos golfinhos. Por momentos pensei que já não prosseguisse a história do suicídio na vida animal e estive certo, porque essa, pela sua complexidade, ficou por contar.




Nuno Brito

1 comentário:

A. Pedro Ribeiro disse...

Obrigado, meu amigo. Folgo que estejas em forma. Abraço.