Vieram de longe para ver Santa Teresa de Ávila a espumar petróleo, óleo sobre tela, de grandes dimensões pintado pelo DJ Kant, o mesmo que Julian Artl considerava o único crítico literário digno do nosso século febril: O mesmo que era incapaz de ler um livro porque os seus dedos lhe tremiam e porque estava sempre com um cigarro na mão (não podia folhear). Contavam-lhe histórias. Da exposição fazia parte também um conjunto de retábulos que Kant pintou para a sua primeira exposição nos arredores de Berlim: “Uma Sagrada Família com o reactor de Chernobyl ao fundo”, ao lado de Uma imagem de Cristo e São João Baptista na Segurança Social”, E uma de “Soror Inês de La Cruz a ser possuída analmente por um cavalo”. O último painel era uma Última Ceia, num jardim, os apóstolos sentados por baixo dos guarda-sóis comiam lírios, que estavam nos pratos e nas travessas: Pedro comia um lírio, Simão comia um lírio, Judas e Paulo também comiam lírios e Jesus descascava a parte branca enquanto trincava a parte laranja, de uma forma que alguns críticos acharam obscena e outros críticos acharam extremamente sensual. A exposição foi bem acolhida pelas revistas de crítica de Arte e ao contrário do que se esperava, passou praticamente desatenta às críticas das Associações católicas. O prior de uma Igreja de Roma comprou os retábulos, para possuir pinturas sagradas de novos valores emergentes da pintura contemporânea.
Artl era um dos convidados para a exposição, escreveu-me depois de Berlim, falando de cada um dos quadros e da admiração que nutria por Kant. Disse-me que Kant o aconselhou a nunca mais escrever, enquanto não conhecesse a fundo a natureza humana. Artl disse-me que ia seguir o conselho: Perguntou-me se seria possível enviar-me por mail o catálogo com as imagens de Kant, e se havia alguma hipótese das imagens serem scanizadas em folha de gelatina. Eu disse-lhe que o cão já estava morto, ou quase morto, porque há muito tempo que não se levantava do tapete, tinha apenas espasmos de vez em quando, nos primeiros dias: Agora nem isso:
Está morto com estômago recheado com os seus últimos contos.
Nuno Brito
quarta-feira, 26 de maio de 2010
Três contos sobre Lírios
“A Literatura é um pacto com o absurdo…”Rober Diaz
A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.
Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.
Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.
Nuno Brito
A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.
Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.
Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.
Nuno Brito
Linha
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Foi um sósia negro que atendeu do outro lado da linha: Já tinha ouvido falar dos sósias extra-continentais que viviam com feições e traços expressivos iguais a homens de outros continentes, apenas com as naturais distinções de raça (palavra obscura). No Dicionário Britânico Universal havia uma entrada para este tipo de sósias, que tem no fim uma extensa bibliografia e lista de célebres sósias inter-continentais.
Do outro lado da linha ouviu a sua própria voz, a penas com um sotaque mais carregado do centro de África, um sósia dos PALOP, que rapidamente identificou consigo próprio. Era a linha de apoio ao suicídio, e a pastilha cor de rosa encontrava-se em frente na mesa, ao lado cinzeiro cheio e de um copo de whisky.
Falou ao sósia, da sua vontade de cometer um nascimento oposto, e contou-lhe a sua história de desempregado. De antigo funcionário nos serviços de apoio ao suicídio da Direcção Geral de Saúde – Agora falava com um colega seu, que lhe parecia inexperiente e que era ele próprio numa versão negra.
Conteve as lágrimas ao falar do último relacionamento; da queda no álcool, do tempo na faculdade de Psicologia, dos conturbados anos do Mestrado. O negro não dizia nada: Sendo ele próprio que falava do outro lado da linha, sabia já a história completa e não deu nenhuma espécie de conselho, não aconselhou a psicoterapia, não passou a chamada a outro especialista, não perguntou antecedentes, o médico que o seguia, não mostrou interesse em saber quais os fármacos psiquiátricos que estava a tomar.
O silêncio manteve-se durante muito tempo entre o mesmo homem de um lado e do outro da linha, que se tornava enferrujada, comunicação tornava-se impossível e muito negra; Porque eram a mesma pessoa, inteiradas do mesmo caso clínico, o silêncio prolongou-se – Pegou no copo de whisky e na pastilha cor de rosa, acendeu outro cigarro e ouviu o isqueiro acender-se do outro lado da linha.
Nuno Brito
Foi um sósia negro que atendeu do outro lado da linha: Já tinha ouvido falar dos sósias extra-continentais que viviam com feições e traços expressivos iguais a homens de outros continentes, apenas com as naturais distinções de raça (palavra obscura). No Dicionário Britânico Universal havia uma entrada para este tipo de sósias, que tem no fim uma extensa bibliografia e lista de célebres sósias inter-continentais.
Do outro lado da linha ouviu a sua própria voz, a penas com um sotaque mais carregado do centro de África, um sósia dos PALOP, que rapidamente identificou consigo próprio. Era a linha de apoio ao suicídio, e a pastilha cor de rosa encontrava-se em frente na mesa, ao lado cinzeiro cheio e de um copo de whisky.
Falou ao sósia, da sua vontade de cometer um nascimento oposto, e contou-lhe a sua história de desempregado. De antigo funcionário nos serviços de apoio ao suicídio da Direcção Geral de Saúde – Agora falava com um colega seu, que lhe parecia inexperiente e que era ele próprio numa versão negra.
Conteve as lágrimas ao falar do último relacionamento; da queda no álcool, do tempo na faculdade de Psicologia, dos conturbados anos do Mestrado. O negro não dizia nada: Sendo ele próprio que falava do outro lado da linha, sabia já a história completa e não deu nenhuma espécie de conselho, não aconselhou a psicoterapia, não passou a chamada a outro especialista, não perguntou antecedentes, o médico que o seguia, não mostrou interesse em saber quais os fármacos psiquiátricos que estava a tomar.
O silêncio manteve-se durante muito tempo entre o mesmo homem de um lado e do outro da linha, que se tornava enferrujada, comunicação tornava-se impossível e muito negra; Porque eram a mesma pessoa, inteiradas do mesmo caso clínico, o silêncio prolongou-se – Pegou no copo de whisky e na pastilha cor de rosa, acendeu outro cigarro e ouviu o isqueiro acender-se do outro lado da linha.
Nuno Brito
segunda-feira, 24 de maio de 2010
Mascarada
Mascarada
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Pensou ir mascarada à festa - Descobriu no espelho da sala que já estava mascarada; não percebeu de quê. Descalçou-se como as outras raparigas de cabelo curto para ir à festa. A cara fugia-lhe para um estranho ângulo, não era bem cara; Observou-se em campo/ contra campo – Não a ela – Mas às outras. Não era cara o que tinha; Descalçou-se e escreveu três poemas em métrica sáfica: “A Expiação de Pizarnik”, “Pathos de Mariana Alcoforado” e “A Tentação de Berlim”. Fez um bolo com muito chantilly para levar à festa. Parecia que voltava a ter cara.
Nessa Noite sonhou que caminhava pelo gelo de um dos pólos, e estava cheia de febre, e era muito grande, anormalmente grande, e os seus pés quentes faziam derreter a neve, e esse degelo criava pequenas lagoas e rios que desciam pela Escandinávia e depois pela Europa toda, e conseguia ver, pelo seu tamanho anormal a Europa toda, os fabricantes de cerveja em Munique, os semeadores de trigo da Sicília, os apostadores da bolsa de Amesterdão: alguns atirando-se de janelas por perderem tudo num mesmo dia. Os pescadores que pescavam no Báltico, os transportadores de sal, os camionistas a entrarem em França e a saírem de França, os leiteiros de todo o continente a levarem as bilhas a casa das pessoas, os guardas de todos os faróis da Europa a ouvirem rádios mal sintonizados, os pastores a percorreram com os seus rebanhos vários trilhos, os paquistaneses a venderem guarda-chuvas e flores em todas as metrópoles da Europa.
E a neve estava um pouco vermelha, como se depois da neve tivessem chovido morangos, e ela calcava a neve e os morangos que no contacto com o seu corpo quente faziam rios vermelhos que desciam das montanhas. Olhava o mar, agora no seu tamanho normal e apareceu uma ninfa com a boca negra de petróleo, vinha do golfo do México onde no seu fundo Neptuno ficava imobilizado, com os músculos presos e cristalizados pelo petróleo gordo. E lembrou-se que o petróleo era antes de o ser, sangue de animais vivos como os dinossauros e de árvores vivas fossilizadas, coisas com vida, que agora davam vida, pensou na revitalização do planeta, e na morte como a grande ficção. A ninfa com a sua língua negra abraçou-a, e deram um linguado que demorou muito tempo, a sua língua estava também negra e o petróleo colou as duas línguas que ficaram presas e entrelaçadas: Mas isso não provocava pânico, era sangue de animais vivos, agora fossilizado, aquilo que permitia agora os carros dos bombeiros apagarem os fogos e fazer os aviões voarem: os dinossauros permitiram o voo aos homens. Isto fez rir as duas. Entraram no mar pensando-se uma única coisa. Escorria-lhes do sexo um leite adocicado enquanto o linguado continuava, e as línguas continuavam entrelaçadas e presas, tal como os braços, os da ninfa gordurosos de petróleo colavam-se aos seus como resina e eram uma só coisa, sentadas de joelhos em frente ao mar, à espera que a maré subisse.
Nuno Brito
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Pensou ir mascarada à festa - Descobriu no espelho da sala que já estava mascarada; não percebeu de quê. Descalçou-se como as outras raparigas de cabelo curto para ir à festa. A cara fugia-lhe para um estranho ângulo, não era bem cara; Observou-se em campo/ contra campo – Não a ela – Mas às outras. Não era cara o que tinha; Descalçou-se e escreveu três poemas em métrica sáfica: “A Expiação de Pizarnik”, “Pathos de Mariana Alcoforado” e “A Tentação de Berlim”. Fez um bolo com muito chantilly para levar à festa. Parecia que voltava a ter cara.
Nessa Noite sonhou que caminhava pelo gelo de um dos pólos, e estava cheia de febre, e era muito grande, anormalmente grande, e os seus pés quentes faziam derreter a neve, e esse degelo criava pequenas lagoas e rios que desciam pela Escandinávia e depois pela Europa toda, e conseguia ver, pelo seu tamanho anormal a Europa toda, os fabricantes de cerveja em Munique, os semeadores de trigo da Sicília, os apostadores da bolsa de Amesterdão: alguns atirando-se de janelas por perderem tudo num mesmo dia. Os pescadores que pescavam no Báltico, os transportadores de sal, os camionistas a entrarem em França e a saírem de França, os leiteiros de todo o continente a levarem as bilhas a casa das pessoas, os guardas de todos os faróis da Europa a ouvirem rádios mal sintonizados, os pastores a percorreram com os seus rebanhos vários trilhos, os paquistaneses a venderem guarda-chuvas e flores em todas as metrópoles da Europa.
E a neve estava um pouco vermelha, como se depois da neve tivessem chovido morangos, e ela calcava a neve e os morangos que no contacto com o seu corpo quente faziam rios vermelhos que desciam das montanhas. Olhava o mar, agora no seu tamanho normal e apareceu uma ninfa com a boca negra de petróleo, vinha do golfo do México onde no seu fundo Neptuno ficava imobilizado, com os músculos presos e cristalizados pelo petróleo gordo. E lembrou-se que o petróleo era antes de o ser, sangue de animais vivos como os dinossauros e de árvores vivas fossilizadas, coisas com vida, que agora davam vida, pensou na revitalização do planeta, e na morte como a grande ficção. A ninfa com a sua língua negra abraçou-a, e deram um linguado que demorou muito tempo, a sua língua estava também negra e o petróleo colou as duas línguas que ficaram presas e entrelaçadas: Mas isso não provocava pânico, era sangue de animais vivos, agora fossilizado, aquilo que permitia agora os carros dos bombeiros apagarem os fogos e fazer os aviões voarem: os dinossauros permitiram o voo aos homens. Isto fez rir as duas. Entraram no mar pensando-se uma única coisa. Escorria-lhes do sexo um leite adocicado enquanto o linguado continuava, e as línguas continuavam entrelaçadas e presas, tal como os braços, os da ninfa gordurosos de petróleo colavam-se aos seus como resina e eram uma só coisa, sentadas de joelhos em frente ao mar, à espera que a maré subisse.
Nuno Brito
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Coisas que servem para ver mais longe
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1.
Sonhei que Santo Agostinho emergia de uma piscina de etanol, a mesma do nosso colégio. Tinha uma touca às riscas, a mesma que usávamos nas competições de natação. O Santo olhava para mim com uns binóculos antigos, notou a minha erecção, que fazia nos calções justos um chumaço torto. A minha boca sabia ainda lixívia doce. O Bispo de Hipona voltou a mergulhar com os binóculos como se procurasse no fundo da piscina uma relíquia da cruz de Cristo.
2.
Vinha da piscina em direcção aos balneários, todos os outros estavam a jogar futebol, no balneário estava o monge, sentado e nu, apenas com uma toalha azul-marinho pelas pernas, que lhe escondia o sexo, a toalha tinha uma ânfora dourada.
3.
Disse que eu era um bom rapaz e convidou-me a sentar ao lado dele, enquanto se ia esfregando, senti aumentar o estampado da toalha, uma ânfora em fio dourado erguia-se com a erecção do monge, parecia triste. Senti necessidade de lhe dizer qualquer coisa, que cantava bem por exemplo, que tinha sido com ele que tinha aprendido a decorar e solfejar os salmos mais belos dos livros antigos. Ele sabia a minha paixão por hagiografias e sobretudo do meu interesse pela obra de Santo Agostinho, e muitas vezes pedia ao monge bibliotecário para me deixar ficar mais tempo com os volumes da “A Cidade de Deus” que eu lia muito devagar, tirando algumas citações do Santo para o meu caderno porque não os podia sublinhar.
4.
A toalha estava quente, o monge guiava a minha mão para cima e para baixo, tive vergonha de olhar para ele. Tirou a toalha e vi o seu sexo erecto, guiou-me a mão até ao sexo e voltou-me a falar dos binóculos, que tinham sido do seu avô, e falava-me de “A Cidade de Deus”. Corrigiu-me a postura da mão, depois disse – um bocado mais depressa – Os binóculos são bons – Eu disse que aquilo era porco e podia aparecer alguém. Ele disse que não e voltou a falar dos binóculos. Eu adorava ter aquele livro, por isso, quando me pôs a mão na cabeça e ma baixou devagarinho, não me atrevi a negar.
……………………………………………………………………………………………
5.
Pensei nos binóculos e na edição nova da “A Cidade de Deus”. Pediu só que eu tocasse na toalha, na parte da ânfora, a que estava mais levantada, eu toquei, e ele pôs a mão por cima da minha, e disse – Faz assim devagar – Eu disse que aquilo era porco e não se devia fazer – Ele não respondeu e começou a contar a história da nossa Instituição, dizia que se lembrava de cor da cara de todos os meninos abandonados que passaram nesta casa, meninos que cresceram e têm agora um futuro pela frente podíamos ter nesta Santa Casa um abrigo, uma esperança e um futuro. Falou-me de um menino que era agora deputado e de um outro professor Universitário em Inglaterra. Enquanto eu continuava no ritmo regular, ajudado pela sua mão, que corrigia por vezes os meus movimentos, fazendo acelerar ou abrandar a intensidade do gesto contou-me que foi ele que pressionou o director a montar a piscina e o pequeno ginásio, porque é bom para nós e para os monges fazer-mos desporto, e o campo de terra batida só dava para os jogos de atletismo, a ginástica e o futebol quando não chovia.
…………………………………………………………………………………………….
6.
- Meti a boca e chupei, tentando pensar nas imagens de um livro de milagres ilustrado que tinha no meu quarto. Segurou-me na cabeça, e pediu que continuasse, esquecendo-se de falar. O sexo ficava cada vez mais duro, e ele pediu para eu continuar até que grunhiu e a minha boca encheu-se de um jacto quente. Ele disse que depois passava no meu quarto e foi tomar banho.
Fui lavar a boca, o esperma quente estava-me nas covas dos dentes, no fundo e debaixo da língua, algum nas amígdalas, e durante vários dias parecia que tudo o que comia no refeitório me sabia a lixívia adocicada.
……………………………………………………………………………………………
O monge boiava numa piscina de etanol, Depois voltou à superfície com uma touca igual às riscas, e Santo Agostinho ficou lá em baixo durante muito tempo. Depois o monge grunhiu de prazer, o mesmo som que tinha feito comigo, imaginei a mancha de esperma a boiar no fundo da piscina. Os espermatozóides em dança eléctrica, nadando uns bruços imperfeitos: procurando um útero, que lhes garantisse a sobrevivência, inexistente na piscina do Etanol.
……………………………………………………………………………………………
No sonho tive medo que pensassem que a mancha branca na piscina fosse minha, de fazer coisas porcas na piscina e sai a correr para o pátio. Entrei na igreja e rezei em frente ao altar de Santa Helena. No etanol a mancha, por um efeito químico, tornava-se fluorescente, como se fosse uma mensagem que o colégio devia acolher.
À noite voltei à piscina para me certificar se a mancha ainda lá estava, procurando o intervalo em que o funcionário do ginásio estava a fumar um cigarro.
Da água escura voltou a emergir Santo Agostinho com a sua touca às riscas, trazia na mão um pedaço de madeira e um espinho. Saiu da água e deu-me as relíquias para a mão, ainda com os binóculos ao peito. A minha boca ainda sabia a lixívia doce, e o arroz na cantina sabia a lixívia doce, e os rissóis pareciam ser de lixívia doce. Embrulhei as relíquias na minha toalha.
1.
Sonhei que Santo Agostinho emergia de uma piscina de etanol, a mesma do nosso colégio. Tinha uma touca às riscas, a mesma que usávamos nas competições de natação. O Santo olhava para mim com uns binóculos antigos, notou a minha erecção, que fazia nos calções justos um chumaço torto. A minha boca sabia ainda lixívia doce. O Bispo de Hipona voltou a mergulhar com os binóculos como se procurasse no fundo da piscina uma relíquia da cruz de Cristo.
2.
Vinha da piscina em direcção aos balneários, todos os outros estavam a jogar futebol, no balneário estava o monge, sentado e nu, apenas com uma toalha azul-marinho pelas pernas, que lhe escondia o sexo, a toalha tinha uma ânfora dourada.
3.
Disse que eu era um bom rapaz e convidou-me a sentar ao lado dele, enquanto se ia esfregando, senti aumentar o estampado da toalha, uma ânfora em fio dourado erguia-se com a erecção do monge, parecia triste. Senti necessidade de lhe dizer qualquer coisa, que cantava bem por exemplo, que tinha sido com ele que tinha aprendido a decorar e solfejar os salmos mais belos dos livros antigos. Ele sabia a minha paixão por hagiografias e sobretudo do meu interesse pela obra de Santo Agostinho, e muitas vezes pedia ao monge bibliotecário para me deixar ficar mais tempo com os volumes da “A Cidade de Deus” que eu lia muito devagar, tirando algumas citações do Santo para o meu caderno porque não os podia sublinhar.
4.
A toalha estava quente, o monge guiava a minha mão para cima e para baixo, tive vergonha de olhar para ele. Tirou a toalha e vi o seu sexo erecto, guiou-me a mão até ao sexo e voltou-me a falar dos binóculos, que tinham sido do seu avô, e falava-me de “A Cidade de Deus”. Corrigiu-me a postura da mão, depois disse – um bocado mais depressa – Os binóculos são bons – Eu disse que aquilo era porco e podia aparecer alguém. Ele disse que não e voltou a falar dos binóculos. Eu adorava ter aquele livro, por isso, quando me pôs a mão na cabeça e ma baixou devagarinho, não me atrevi a negar.
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5.
Pensei nos binóculos e na edição nova da “A Cidade de Deus”. Pediu só que eu tocasse na toalha, na parte da ânfora, a que estava mais levantada, eu toquei, e ele pôs a mão por cima da minha, e disse – Faz assim devagar – Eu disse que aquilo era porco e não se devia fazer – Ele não respondeu e começou a contar a história da nossa Instituição, dizia que se lembrava de cor da cara de todos os meninos abandonados que passaram nesta casa, meninos que cresceram e têm agora um futuro pela frente podíamos ter nesta Santa Casa um abrigo, uma esperança e um futuro. Falou-me de um menino que era agora deputado e de um outro professor Universitário em Inglaterra. Enquanto eu continuava no ritmo regular, ajudado pela sua mão, que corrigia por vezes os meus movimentos, fazendo acelerar ou abrandar a intensidade do gesto contou-me que foi ele que pressionou o director a montar a piscina e o pequeno ginásio, porque é bom para nós e para os monges fazer-mos desporto, e o campo de terra batida só dava para os jogos de atletismo, a ginástica e o futebol quando não chovia.
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6.
- Meti a boca e chupei, tentando pensar nas imagens de um livro de milagres ilustrado que tinha no meu quarto. Segurou-me na cabeça, e pediu que continuasse, esquecendo-se de falar. O sexo ficava cada vez mais duro, e ele pediu para eu continuar até que grunhiu e a minha boca encheu-se de um jacto quente. Ele disse que depois passava no meu quarto e foi tomar banho.
Fui lavar a boca, o esperma quente estava-me nas covas dos dentes, no fundo e debaixo da língua, algum nas amígdalas, e durante vários dias parecia que tudo o que comia no refeitório me sabia a lixívia adocicada.
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O monge boiava numa piscina de etanol, Depois voltou à superfície com uma touca igual às riscas, e Santo Agostinho ficou lá em baixo durante muito tempo. Depois o monge grunhiu de prazer, o mesmo som que tinha feito comigo, imaginei a mancha de esperma a boiar no fundo da piscina. Os espermatozóides em dança eléctrica, nadando uns bruços imperfeitos: procurando um útero, que lhes garantisse a sobrevivência, inexistente na piscina do Etanol.
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No sonho tive medo que pensassem que a mancha branca na piscina fosse minha, de fazer coisas porcas na piscina e sai a correr para o pátio. Entrei na igreja e rezei em frente ao altar de Santa Helena. No etanol a mancha, por um efeito químico, tornava-se fluorescente, como se fosse uma mensagem que o colégio devia acolher.
À noite voltei à piscina para me certificar se a mancha ainda lá estava, procurando o intervalo em que o funcionário do ginásio estava a fumar um cigarro.
Da água escura voltou a emergir Santo Agostinho com a sua touca às riscas, trazia na mão um pedaço de madeira e um espinho. Saiu da água e deu-me as relíquias para a mão, ainda com os binóculos ao peito. A minha boca ainda sabia a lixívia doce, e o arroz na cantina sabia a lixívia doce, e os rissóis pareciam ser de lixívia doce. Embrulhei as relíquias na minha toalha.
sábado, 15 de maio de 2010
Créme de la créme
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O mar é aquela coisa bela,
Azul e profunda onde os homens se afogam
Anónimo Português século XXI
Não sou o tempo que demoram as ametistas a chegar ao fundo do mar,
Sou só uma pessoa que quer mergulhar em todos os olhos e não sair, uma ametista
Ansiosa que as pessoas se abracem; e ser também esse abraço para que as estrelas se venham, e que os olhos tristes da minha amiga nevem
Ando pelas ruas à espera que dois olhos me violem o metaplasma, Acendam a espinha;
Adoro lamber lágrimas e caras inteiras, as pequenas estrias e nódoas negras que Bernini esculpiu nos tornozelos da estátua A Verdade, são iguais às dos teus tornozelos, estrias, veias finas e azuladas, nódoas negras, hematonas, nas pernas / na pedra / bem torneados de um veio de mármore um pouco mais azulado
O amor é como carne
sabe a mar e a limão, a parte de trás das orelhas – disseste
Que as estrelas-do-mar são virtualmente eternas, porque são só pontas e sensação,
e quando uma ponta é cortada dá origem a uma estrela nova, e isso pode demorar séculos, inquisições, guerras mundiais, guerras nucleares, holocaustos africanos, eclipses totais do sol,
As estrelas-do-mar são virtualmente eternas
se me pedem para escrever um texto de cariz social, lembro-me da imagem do Rodas, a ingerir os pacotes de coca e heroína, poucos segundos antes da polícia aparecer no início da rua e de alguém lhe assobiar, vinte minutos depois de ser revistado a ir à banca beber água quente e azeite, e meter os dedos dentro da boca para vomitar - Tudo antes que os sacos rebentem: Na esquadra, diz-me o Rodas, levam alguns que não têm produto nos bolsos, ou enfiado nas meias para o hospital,
E no hospital metem-nos o caga-rápido, e descobrem as embalagens – Já esteve preso seis meses, mas as coisas correm bem, mesmo com duas noites seguidas que passou na esquadra, e depois olha-me febril, a dizer que tem de sair da cidade, no dia anterior à visita do Papa, noite em que não é seguro vender, porque anda muita polícia na rua, e pensa sair, ir para o sul onde tem família. E lembro-me do discurso sobre a dignidade do homem de Giovanni Pico della Mirandola, e da responsabilidade total do homem de Jean Paul Sartre, e isso dá-me vontade de rir, e de ser abraçado pelo Sol, e dar Vida, nos braços, de um beco escuro ao lado da rua Mouzinho, dois injectam o sol líquido nos braços e tombam para a frente, e o sol aparece mais acima carregado de um esperma, gerado em chamas pela vitalidade e loucura dos homens: que lhe permite brilhar, num cio de estrela dependente de emoções
***********************************************************************
atravesso a nado os teus braços, as tuas pernas, a tua nuca, a parte de trás das orelhas sujas de café, de uma lambidela suja: por ti, (e vemos de todos os olhos) – O que foi visto e se há-de ver: abraço-te a mim, num corpo único que há- de rebentar recheado de sol, sinto o teu corpo pelas minhas mãos, pelos teus olhos vejo entrarem todos os mares, e acenderem¬-te de desejo e resignação, como se uma orquestra que tocasse Mahler fosse enviada para Neptuno, os músicos unidos por fios dourados, coisas que ligam – pessoas a pessoas – tudo se acende à minha volta, assobiam do fundo da rua, o Rodas corre. A travesti canta para nós. A orquestra faz o planeta vir-se, e uma chuva de néon cai sobre a terra, da Eurásia à Austrália. Atiramo-nos para uma piscina, e no fundo, descobrimos uma galeria subaquática, que se bifurcava por baixo do solo: saíamos na região do medo, como se saíssemos na estação de Montparnasse
Mostrou-me um livro – Eu escrevi um livro sobre a droga – Corrigiu: Eu ditei para um escritor a minha experiência com a droga, Rodas! Rodas! – O Rodas chegou do quarto – Sabes onde está o livro sobre a droga que ajudei o escritor a escrever? – Está aí naquela gaveta – O Rodas foi à gaveta e tirou de lá um livro com a capa de um cor-de-laranja muito carregado e mostrou-me:
O título era “Como evitar a droga?” – A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem e acendeu um cigarro.
……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………
Continuámos pelas galerias que a piscina nos oferecia, encontramos Cronos de calções, dois semideuses sem os dentes da frente nadavam em sentido contrário como Neptunos. Mais à frente descia o nível das águas, e passámos a caminhar no lodo, apareceu um guia da América central com um microfone preso ao pescoço, guiou-nos pelo Inferno com a sua voz de sopinha de massas – Em que círculo estamos? – Perguntei ao meu amigo, que era uma puma, e outras vezes uma mulher – Não estamos em nenhum círculo – Estamos por baixo da casa onde mora o Rodas: E mais à frente ali os ratos – Não são ratos, são homens que desceram na condição social – Disse o guia – A pirâmide, está a ver, aqui vemos pirâmides, pensamos em triângulos, vemo-los por todos os lados, ainda não somos capazes de assumir a natureza humana, sem hierarquias verticais – Mas o planeta é uma linha horizontal da qual o homem se aproxima na sua subida. Assim, não são ratos, são homens: Vivem como ratos mas são homens. Pedi um cigarro ao meu guia e ele falou-me de um homem sábio.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………
Qualquer rato tem a sua mãe, e as mães dos ratos vão visitá-los à prisão e as namoradas dos ratos vão à prisão e fazem sexo com os ratos, e levam os filhos mais tarde para que os ratos vejam os seus filhos – E os ratos olham-se ao espelho – ansiosos por descobrir os mais Fundos Limites humanos e não vêm o espelho, vêm só um homem que são eles, obrigados a ter dignidade.
****
O homem sábio era David Foster Wallace, disse-me o guia, que como qualquer homem é sábio: E isto deu-me vontade de rir, e não sei porquê imaginei os músicos ainda ligados por fios dourados em Neptuno a tocarem agora Bethoven – e lembrei-me da palavra “húmido” como adoro a palavra “húmido” como adoro tudo o que está húmido no corpo humano – como amo – tal como Milton – Tudo quanto fluí – e senti-me escorregar pelas galerias sem rumo e sem escolha do caminho entrando por umas saindo por outras auxiliado pela música:
A forma mais evoluída de literatura – David Foster Wallace escreveu em “raparigas de cabelos estranhos” uma pequena história sobre um grupo de amigos que vão assistir a um concerto de jazz, na segunda parte do espectáculo, dois deles saem (um deles é a personagem principal do conto) E o outro rapaz que tinha tomado LSD antes do concerto diz à personagem principal: De onde advém a tua felicidade natural? --- Se me explicares de onde advêm a tua felicidade natural deixo-te esporrar para cima de mim e da minha namorada – No conto a personagem principal sente-se embaraçada com a pergunta mas começa a responder, são cinco páginas completas a resposta dele, uma resposta insegura que não convence o outro que lhe diz – Falas-te muito, mas não me disseste de onde provêm a tua felicidade natural. A personagem principal sente-se derrotado na capacidade de diálogo, mas tenta uma última tentativa: Se eu te der 1000 dólares deixas-me ir com a tua namorada? – O amigo aceita. O conto acaba pouco depois, ficando em aberto essa hipótese que o fim da narrativa não permite saber se se concretiza.
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As estrelas do mar são virtualmente eternas
As medusas são virtualmente eternas
(Porque não têm sistema central, não pensam, sobretudo não reflectem, são só nervos e sensação, ponta e electricidade)
A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem.
O mar é aquela coisa bela,
Azul e profunda onde os homens se afogam
Anónimo Português século XXI
Não sou o tempo que demoram as ametistas a chegar ao fundo do mar,
Sou só uma pessoa que quer mergulhar em todos os olhos e não sair, uma ametista
Ansiosa que as pessoas se abracem; e ser também esse abraço para que as estrelas se venham, e que os olhos tristes da minha amiga nevem
Ando pelas ruas à espera que dois olhos me violem o metaplasma, Acendam a espinha;
Adoro lamber lágrimas e caras inteiras, as pequenas estrias e nódoas negras que Bernini esculpiu nos tornozelos da estátua A Verdade, são iguais às dos teus tornozelos, estrias, veias finas e azuladas, nódoas negras, hematonas, nas pernas / na pedra / bem torneados de um veio de mármore um pouco mais azulado
O amor é como carne
sabe a mar e a limão, a parte de trás das orelhas – disseste
Que as estrelas-do-mar são virtualmente eternas, porque são só pontas e sensação,
e quando uma ponta é cortada dá origem a uma estrela nova, e isso pode demorar séculos, inquisições, guerras mundiais, guerras nucleares, holocaustos africanos, eclipses totais do sol,
As estrelas-do-mar são virtualmente eternas
se me pedem para escrever um texto de cariz social, lembro-me da imagem do Rodas, a ingerir os pacotes de coca e heroína, poucos segundos antes da polícia aparecer no início da rua e de alguém lhe assobiar, vinte minutos depois de ser revistado a ir à banca beber água quente e azeite, e meter os dedos dentro da boca para vomitar - Tudo antes que os sacos rebentem: Na esquadra, diz-me o Rodas, levam alguns que não têm produto nos bolsos, ou enfiado nas meias para o hospital,
E no hospital metem-nos o caga-rápido, e descobrem as embalagens – Já esteve preso seis meses, mas as coisas correm bem, mesmo com duas noites seguidas que passou na esquadra, e depois olha-me febril, a dizer que tem de sair da cidade, no dia anterior à visita do Papa, noite em que não é seguro vender, porque anda muita polícia na rua, e pensa sair, ir para o sul onde tem família. E lembro-me do discurso sobre a dignidade do homem de Giovanni Pico della Mirandola, e da responsabilidade total do homem de Jean Paul Sartre, e isso dá-me vontade de rir, e de ser abraçado pelo Sol, e dar Vida, nos braços, de um beco escuro ao lado da rua Mouzinho, dois injectam o sol líquido nos braços e tombam para a frente, e o sol aparece mais acima carregado de um esperma, gerado em chamas pela vitalidade e loucura dos homens: que lhe permite brilhar, num cio de estrela dependente de emoções
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atravesso a nado os teus braços, as tuas pernas, a tua nuca, a parte de trás das orelhas sujas de café, de uma lambidela suja: por ti, (e vemos de todos os olhos) – O que foi visto e se há-de ver: abraço-te a mim, num corpo único que há- de rebentar recheado de sol, sinto o teu corpo pelas minhas mãos, pelos teus olhos vejo entrarem todos os mares, e acenderem¬-te de desejo e resignação, como se uma orquestra que tocasse Mahler fosse enviada para Neptuno, os músicos unidos por fios dourados, coisas que ligam – pessoas a pessoas – tudo se acende à minha volta, assobiam do fundo da rua, o Rodas corre. A travesti canta para nós. A orquestra faz o planeta vir-se, e uma chuva de néon cai sobre a terra, da Eurásia à Austrália. Atiramo-nos para uma piscina, e no fundo, descobrimos uma galeria subaquática, que se bifurcava por baixo do solo: saíamos na região do medo, como se saíssemos na estação de Montparnasse
Mostrou-me um livro – Eu escrevi um livro sobre a droga – Corrigiu: Eu ditei para um escritor a minha experiência com a droga, Rodas! Rodas! – O Rodas chegou do quarto – Sabes onde está o livro sobre a droga que ajudei o escritor a escrever? – Está aí naquela gaveta – O Rodas foi à gaveta e tirou de lá um livro com a capa de um cor-de-laranja muito carregado e mostrou-me:
O título era “Como evitar a droga?” – A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem e acendeu um cigarro.
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Continuámos pelas galerias que a piscina nos oferecia, encontramos Cronos de calções, dois semideuses sem os dentes da frente nadavam em sentido contrário como Neptunos. Mais à frente descia o nível das águas, e passámos a caminhar no lodo, apareceu um guia da América central com um microfone preso ao pescoço, guiou-nos pelo Inferno com a sua voz de sopinha de massas – Em que círculo estamos? – Perguntei ao meu amigo, que era uma puma, e outras vezes uma mulher – Não estamos em nenhum círculo – Estamos por baixo da casa onde mora o Rodas: E mais à frente ali os ratos – Não são ratos, são homens que desceram na condição social – Disse o guia – A pirâmide, está a ver, aqui vemos pirâmides, pensamos em triângulos, vemo-los por todos os lados, ainda não somos capazes de assumir a natureza humana, sem hierarquias verticais – Mas o planeta é uma linha horizontal da qual o homem se aproxima na sua subida. Assim, não são ratos, são homens: Vivem como ratos mas são homens. Pedi um cigarro ao meu guia e ele falou-me de um homem sábio.
………………………………………………………………………………………………………………………………………………
Qualquer rato tem a sua mãe, e as mães dos ratos vão visitá-los à prisão e as namoradas dos ratos vão à prisão e fazem sexo com os ratos, e levam os filhos mais tarde para que os ratos vejam os seus filhos – E os ratos olham-se ao espelho – ansiosos por descobrir os mais Fundos Limites humanos e não vêm o espelho, vêm só um homem que são eles, obrigados a ter dignidade.
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O homem sábio era David Foster Wallace, disse-me o guia, que como qualquer homem é sábio: E isto deu-me vontade de rir, e não sei porquê imaginei os músicos ainda ligados por fios dourados em Neptuno a tocarem agora Bethoven – e lembrei-me da palavra “húmido” como adoro a palavra “húmido” como adoro tudo o que está húmido no corpo humano – como amo – tal como Milton – Tudo quanto fluí – e senti-me escorregar pelas galerias sem rumo e sem escolha do caminho entrando por umas saindo por outras auxiliado pela música:
A forma mais evoluída de literatura – David Foster Wallace escreveu em “raparigas de cabelos estranhos” uma pequena história sobre um grupo de amigos que vão assistir a um concerto de jazz, na segunda parte do espectáculo, dois deles saem (um deles é a personagem principal do conto) E o outro rapaz que tinha tomado LSD antes do concerto diz à personagem principal: De onde advém a tua felicidade natural? --- Se me explicares de onde advêm a tua felicidade natural deixo-te esporrar para cima de mim e da minha namorada – No conto a personagem principal sente-se embaraçada com a pergunta mas começa a responder, são cinco páginas completas a resposta dele, uma resposta insegura que não convence o outro que lhe diz – Falas-te muito, mas não me disseste de onde provêm a tua felicidade natural. A personagem principal sente-se derrotado na capacidade de diálogo, mas tenta uma última tentativa: Se eu te der 1000 dólares deixas-me ir com a tua namorada? – O amigo aceita. O conto acaba pouco depois, ficando em aberto essa hipótese que o fim da narrativa não permite saber se se concretiza.
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As estrelas do mar são virtualmente eternas
As medusas são virtualmente eternas
(Porque não têm sistema central, não pensam, sobretudo não reflectem, são só nervos e sensação, ponta e electricidade)
A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem.
terça-feira, 27 de abril de 2010
Ensaio sobre a cara
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Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)
Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.
Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.
Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.
Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.
Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)
Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.
Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.
Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.
Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.
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