segunda-feira, 11 de julho de 2011

Antena





Não há salvação possível fora da imitação do silêncio. Mas a nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozóides verbosos, estamos quimicamente ligados à Palavra: Emil Cioran.




A televisão tinha deixado de dar há dois dias. O Tio Sam disse que devia ser por causa do ninho das cegonhas na antena. Muitas cegonhas morriam electrocutadas em toda a Provença, as televisões deixavam de dar. O sistema de televisão terrestre digital estava a alterar isso. Muitas pessoas metiam também televisão por cabo. Mas na nossa zona ainda não funcionava. O Tio abriu uma garrafa de cerveja e bebeu directamente pelo gargalo. Fazia muito calor. A avó dormia. O tio sugeriu que fossemos para o quintal fazer um boneco de palha, com um ninho de cegonhas por cima da cabeça. Para as cegonhas irem para lá e deixarem a antena. Eu fui com ele. Passamos a tarde toda a apanhar palha. O tio dava nós nos molhos de palha que faziam os braços e os pés. Depois a cabeça. Ao fim da tarde o boneco ficou pronto. Depois o tio foi buscar uma escada e pô-la junto ao poste com a antena. O ninho estava vazio. Fiquei a segurar a escada. O tio apanhou o ninho, trouxe-o para baixo com cuidado até ao terceiro degrau e passou-mo para as mãos, no cimo de uma antena. Mostrou-me o ninho. Tinha dois ovos. A avó tinha acordado e ido ao jardim e também viu os ovos. Disse que os queria para os fazer estrelados com compota de morango e salsichas brancas pequenas. Disse que isso lhe fazia lembrar quando era pequenina. Mas o avô e eu não deixamos e os ovos ficaram nos ninhos. Fizemos uma pausa para ir lanchar e fomos para a cozinha. Depois o tio meteu o ninho no cimo do boneco. Fui buscar dois novelos de lã branca que eram da avó e que serviram para fazer os olhos. O avô cozeu os olhos ao boneco, depois metemos-lhe uns óculos de sol. O tio cozeu o ninho à cabeça do boneco. Ficamos sentados à espera que a cegonha chegasse.
A avó disse que a televisão já estava a dar e começou a ver um concurso. Adormeceu outra vez. Vimos a cegonha vir pela janela. O tio disse que ela devia ter cerca de um metro de altura. Ficamos a espreitá-la de dentro para não se assustar. Parecia que não estranhava o novo ninho. Era como se ele sempre tivesse estado aí. Ficava muito bem no cimo do boneco. Via-se o sol pôr-se ao fundo da seara. O tio foi buscar outra cerveja ao frigorífico. Mudou de canal. Eu também me sentei. Estava a dar a notícia de que dois aviões tinham batido nas torres gémeas. Ficamos a ver com atenção. As imagens repetiam-se. Estávamos todos assustados. De vez em quando viam-se pequeninos pontinhos a caírem dos prédios. Essas imagens alternavam com a das torres a ruírem pelo meio. O apresentador falava muito rápido. Outras vezes os pontinhos caíam. Perguntei ao tio se eram pessoas. O tio não respondeu. Perguntei outra vez, o silêncio apoderou-se da sala.

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